Usucapião: loteamento clandestino

Usucapião: loteamento clandestino. Veja-se que o fato de o loteamento ser irregular e/ou a área do imóvel ser menor do que o módulo estabelecido pelo Município não impede, por si só, a eventual procedência da ação de usucapião (Tema n. 815 da Rep. Geral e Tema 985).

Processo: 0001373-85.2012.8.24.0104 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Fernanda Sell de Souto Goulart
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Oitava Câmara de Direito Civil
Julgado em: 28/11/2023
Classe: Apelação

Apelação Nº 0001373-85.2012.8.24.0104/SC

RELATORA: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART

APELANTE: CLARICIO CAITANO (AUTOR) APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP) APELANTE: ARACI FIDELIS CAITANO (AUTOR) APELADO: ANGELO DANTE BIZ (RÉU) APELADO: OS MESMOS

+ Usucapião ou adjudicação compulsória?

RELATÓRIO

Trata-se de apelações interpostas por CLARICIO CAITANO, ARACI FIDELIS CAITANO e MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA em face da sentença que extinguiu o feito sem resolução do mérito em ação de usucapião ajuizada em desfavor de ANGELO DANTE BIZ. 
Adota-se o relatório elaborado pelo juízo a quo por representar fielmente a realidade dos autos:
Trata-se de ação de usucapião ajuizada por Clarício Caitano e Araci Fidelis Caitano em face do proprietário registral de imóvel urbano (descrito na fl. 36), sob o argumento de ser(em) possuidor(es) há período de tempo suficiente para prescrição aquisitiva sem qualquer oposição. 
O réu, confrontantes e interessados foram citados e os entes públicos pertinentes foram cientificados da demanda, porém nenhum deles se opôs ao pedido aquisitivo deduzido na petição inicial (fl. 72). 
Determinou-se o compartilhamento da prova oral produzida nos autos n. 0001345-20.2012.8.24.0104 (fl. 159). 
O Ministério Público pugnou pela extinção do processo por falta de interesse ou, subsidiariamente, a improcedência da demanda (fls. 176/189). 
Após o regular trâmite, os autos vieram conclusos. 
É o relatório. Decido.

+ Qual o tempo de posse necessário para a usucapião de um imóvel?

Concluídos os trâmites, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Ante o exposto, EXTINGO este processo, sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, VI, do CPC. 
Condeno a parte autora ao pagamento das custas, ficando suspensa a exigibilidade, conforme o art. 98, § 3º, do CPC, em razão do benefício da Justiça Gratuita. 
Sem condenação em verba honorária, porque não houve resistência. 
Por força do princípio da concentração registral pelo qual todo e qualquer fato que possa repercutir no imóvel deve estar lançado na respectiva matrícula (ou registro, nos imóveis lançados no fólio real antes da Lei nº 6.015/73) , e a tanto autorizada por interpretação teleológica do art. 167, I, 21, da Lei nº 6.015/73, determino que, de imediato, oficie-se ao Ofício do Registro de Imóveis competente para que registre na matrícula apresentada à fl. 10 a existência desta ação de usucapião e esta sentença que a extinguiu, cabendo ao Registrador comprovar nos autos o cumprimento dessa determinação no prazo de 15 dias. 
Publique-se, registre-se e intimem-se, inclusive o Ministério Público. 
Oportunamente, arquivem-se
Inconformadas com o ato decisório, as partes autoras e o Ministério Público do Estado de Santa Catarina interpuseram recurso de apelação.

+ É possível usucapião de automóvel ou de outro bem móvel?

Nas razões recursais, os autores alegaram, em síntese, que:  a) que restaram preenchidos todos os requisitos para a procedência da demanda; b) que o juízo de origem está exigindo um requisito para a ação de usucapião que não consta do ordenamento jurídico; c) a existência de feitos semelhantes que foram julgados de maneira diversa.
Com tais argumentos, formularam os seguintes requerimentos:
Ante o exposto, assim requer: 
a) Seja recebido o presente recurso de apelação em seus efeitos suspensivo e devolutivo, e após a sua admissibilidade seja julgado PROCEDENTE, afirmando-se o INTERESSE DE AGIR da apelante, revertendo assim a sentença de primeiro grau; 
b) Ante o estado dos autos, promova-se o julgamento da presente ação nesta instância, com a declaração da USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA pretendida; 
c) Caso assim não entenda possível, seja determinado o prosseguimento do feito em primeira instância até o seu julgamento de mérito;
Em suas razões, o órgão ministerial afirmou, resumo, a falta de interesse de agir dos autores em razão de a área usucapienda estar inserida em loteamento irregular, e não em decorrência de aquisição derivada, porquanto ausentes elementos que demonstrem que a “aquisição” do bem se deu diretamente do proprietário registral. 

+ Usucapião: alteração do caráter originário da posse

Intimados para apresentar contrarrazões aos recursos, apenas o Ministério Público se manifestou (evento 121, CONTRAZAP1).
A Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso dos autos, e pelo conhecimento e parcial provimento do recurso do Ministério Público.
Por fim, vieram os autos para análise.

VOTO

I. RECURSO DA PARTE AUTORA 
1. Preliminares 
Não há preliminares em contrarrazões para análise. 
2. Admissibilidade
Presentes os pressupostos legais, admite-se o recurso. 
3. Mérito
Passa-se ao exame do mérito do recurso, antecipando-se que o caso é de provimento. 
O juízo a quo extinguiu o feito sem resolução de mérito com base em fundamentos assim expostos:
A usucapião é o exemplo clássico de aquisição originária da propriedade, que pressupõe a inexistência de uma transação ou alienação da coisa por um antigo proprietário, e também apaga os ônus que acompanham a coisa (v.g. TJSC, Apelação Cível n. 0008000-23.2013.8.24.0023, da Capital, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 10-12-2019). Vale dizer, não há continuidade causal entre o direito do proprietário anterior e a alegada posse ad usucapionem do autor da ação de usucapião. Não há aí qualquer relação jurídica de transmissão.

+ O que é posse de boa-fé?

Pontes de Miranda, a propósito, elucida que pela usucapião “adquire-se, porém não se adquire de alguém. O novo direito já começou a formar-se antes que o velho se extinguisse. Chega o momento em que esse não mais pode subsistir, suplantado por aquele. Dá-se a impossibilidade de coexistência, e não sucessão, não o nascer um do outro. Nenhum ponto entre os dois marca a continuidade. Nenhuma relação, a fortiori, entre o perdente do direito de propriedade e o usucapiente” (Comentários ao CPC, v. 13, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 349).
No mesmo sentido, Sílvio de Salvo Venosa leciona: 
Dizemos que a aquisição da propriedade é originária quando desvinculada de qualquer relação com o titular anterior. Nela não existe relação jurídica de transmissão. Inexiste, ou não há relevância jurídica na figura do antecessor. Sustenta-se ser apenas a ocupação verdadeiramente modo originário de aquisição. Todavia, sem dúvida como a maioria da doutrina, entendam-se como originárias também as aquisições por usucapião e acessão natural. Nessas três modalidades, não existe relação jurídica do adquirente com o proprietário precedente. Caso típico de aquisição originária é o usucapião. O bem usucapido pode ter pertencido a outrem, mas o usucapiente dele não recebe a coisa. Seu direito de aquisição não decorre do antigo proprietário. Na aquisição originária, o único elemento que para ele concorre é o próprio fato ou ato jurídico que lhe dá nascimento. (Direito Civil – Direitos Reais, v. 5, 6ª ed., São Paulo: Atlas, p. 175-176).
Assim, a usucapião não pode ser utilizada para a transferência da propriedade a partir de conduta, operação ou situação do proprietário anterior, justamente porque aí a aquisição da propriedade é derivada, pela qual o adquirente sucede o proprietário no seu precedente direito. Há, portanto, vinculação jurídica da propriedade anterior ao adquirente. É a hipótese, por exemplo, de quem firma contrato particular com o proprietário do imóvel e, em vez de exigir se necessário judicialmente a escritura pública de compra e venda, propõe ação de usucapião, ou dos sucessores do proprietário falecido que pretendem fazer uso da ação de usucapião para obterem a transferência causa mortis (unicamente por força da saisine) de imóveis.

+ O que é posse justa?

Além disso, a usucapião, nesse contexto, para mais de poder representar burla a exigências administrativas para a transferência da propriedade (como, exemplificativamente, a necessidade de anterior desmembramento do imóvel, ou mesmo o atendimento a requisitos urbanísticos impostos pela legislação municipal), ainda traduz inquestionável sonegação fiscal. É claro. A transferência de imóvel inter vivos está sujeita ao ITBI, e a causa mortis e aquela decorrente de doação, ao ITCMD, tributos que não são recolhidos quando, nesses casos, se permite a transferência da propriedade pela usucapião.
A jurisprudência não discrepa:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA QUE DECLARA A AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR E INDEFERE A PEÇA INICIAL. RECURSO DA PARTE AUTORA. ALEGADA A PRESENÇA DE TODOS OS REQUISITOS PARA A AQUISIÇÃO DO IMÓVEL POR USUCAPIÃO. NÃO OCORRÊNCIA. UNIDADE IMÓVEL CONSTITUÍDA DE TERRENOORIUNDO DE GLEBA COM MATRÍCULA PRÓPRIA. NECESSIDADE DE MANEJO DE FEITO REGISTRAL PRÓPRIO QUE DESTAQUE A FRAÇÃOIDEAL DA COISA E CONSTITUA MATRÍCULA PRÓPRIA. AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DERIVADA DE DOMÍNIO ANTERIOR. FALTA DE INTERESSE NA MODALIDADE DE ADEQUAÇÃO PROCEDIMENTAL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 0311484-42.2018.8.24.0008, de Blumenau, rel. Des. Rubens Schulz, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 27-02-2020). Grifou-se). APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. EXTINÇÃO, SEMJULGAMENTO DO MÉRITO. CARACTERIZAÇÃO DA AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE POR DERIVAÇÃO. DEMANDA JUDICIAL DE PRESCRIÇÃO AQUISITIVA IMPRESTÁVEL PARA TAL FIM. DOMÍNIO JÁ CONFIRMADO. NECESSIDADE DE RECOLHIMENTO DOS TRIBUTOS FISCAIS E REGULARIZAÇÃO DO BEM NO ÓRGÃO COMPETENTE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. RECURSO DESPROVIDO. Demonstrado que a aquisição do imóvel ocorreu por derivação e não de forma originária, ou seja, que a alienação do bem se deu por transmissão imobiliária, a ação de usucapião mostra-se inviável para o reconhecimento do direito de propriedade, já que a detém por título aquisitivo. Ademais, corroborar com a tese de prescrição aquisitiva para ao adquirente do bem por contrato de compra e venda, viabiliza a sonegação fiscal à transferência formal da propriedade. (TJSC, Apelação Cível n. 2015.035640-8, de Tubarão, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa, j. 20-08-2015). (Grifou-se)
Na espécie, a parte autora alega que o imóvel é remanescente da propriedade de Ângelo Dante Biz (fl. 10). Ainda, destaca na inicial que o imóvel foi adquirido junto ao requerido ou de pessoas que dele adquiriram (fl. 02), até o momento em que a sucessão de transações envolveu a parte autora, quando passou a exercer a posse de forma mansa e pacífica. A parte requerente juntou contratos de compra e venda (fls. 16/35). 

+ Qual a diferença entre posse e detenção?

É a típica situação em que há transferência do direito do proprietário anterior para aqueles que antecederam o usucapiente na posse e, portanto, a aquisição da propriedade é derivada, e não originária. Por isso mesmo, a ação de usucapião não pode ser utilizada, ainda mais porque, no caso, implica clara sonegação fiscal, além de burlar a necessidade de prévio desmembramento do imóvel.
O que resta, então, é a extinção desta ação de usucapião por falta de interesse processual, na forma do art. 485, VI, do CPC.
Pois bem. 
A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei. Nesse sentido, destaca-se:
“O fundamento desse modelo jurídico é dúplice: representa um prêmio àquele que por um período significativo imprimiu ao bem uma aparente destinação de proprietário; mas também importa em sanção ao proprietário desidioso e inerte que não tutelou o seu direito em face da posse exercida por outrem. Por isso a sentença de procedência da ação de usucapião apenas reconhec e o domínio adquirido com a satisfação dos requisitos legais.” (FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: Reais. 13ª ed. Salvador: Jus podivm, 2017, p. 394).
Assim, como cediço, no ordenamento civil brasileiro, a posse, associada ao tempo de exercício, é requisito fundamental para a declaração de domínio por usucapião. Imperativa, porém, é a sua caracterização como posse ad usucapionem, exigindo a lei, em primeiro lugar, a comprovação do ânimo de dono, ou seja, a atitude ativa no sentido do exercício dos poderes inerentes à propriedade, comportando-se o autor ostensivamente perante terceiros como se comportaria o proprietário. O segundo requisito é a continuidade da posse, isto é, ela deve ser exercida de modo ininterrupto, além de público, e pelo lapso temporal prescrito em lei. Finalmente, como terceiro requisito, exige-se que a posse seja mansa e pacífica, exercida, pois, sem oposição.

+ O que é posse direta e posse indireta?

Diante destes apontamentos é que se deve analisar, então, a presença dos requisitos necessários para a configuração da posse, na situação concreta.
Extrai-se dos elementos dos autos que a apelante ocupa o imóvel desde 2008. Porém, não se questiona, em um primeiro momento, que os autores estejam em poder do imóvel, mas sob qual qualidade estão ocupando o referido bem. Neste aspecto, verifica-se que os autores estão na posse do imóvel porque o “adquiriram” de Adão Cecilio da Silva e Neuza Magaldi da Silva, através de “contrato particular de compromisso de compra e venda” (evento 10, ANEXO16).
Já está sedimentado na jurisprudência o entendimento de que a existência de prévio negócio de transmissão de domínio do imóvel entre a parte autora da ação de usucapião e a proprietária do imóvel impede o ajuizamento da demanda. Isso porque a ação de usucapião visa à aquisição de bens de propriedade alheia, uma vez que é o instrumento jurídico pelo qual o possuidor/não proprietário pode, através da prova da posse mansa, pacífica e ininterrupta, por certo lapso de tempo, obter declaração de propriedade. 
Não seria este, portanto, o meio adequado para se obter a escritura definitiva do imóvel, eis que não haveria como se admitir a aquisição originária de propriedade por intermédio de usucapião àquele que firmou compromisso de compra e venda com o proprietário do bem ou com o comprador originário e, portanto, visa à aquisição do domínio de forma derivada.
Este, porém, não é o caso dos autos. 
Isso porque, consoante já mencionado, os apelantes adquiriram o imóvel de Adão Cecilio da Silva e Neuza Magaldi da Silva, estes que, por sua vez, adquiriram de Jaison Sidnei Berner e Leidi Daiana Nunes, e assim sucessivamente (evento 10, ANEXO16, cláusula primeira).
Constata-se, portanto, que os apelantes não adquiriram o imóvel diretamente do proprietário registral – Ângelo Dante Biz -, não havendo como entender, na espécie, a existência de aquisição derivada da propriedade, sendo certo o interesse de agir dos recorrentes nesta demanda.

+ Quem mora de favor pode pedir usucapião?

Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR, DECORRENTE DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA POSSE. RECURSO DOS AUTORES. POSSE DO IMÓVEL USUCAPIENDO RECEBIDA DE TERCEIROS, SEM RELAÇÃO COM OS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS. AQUISIÇÃO, EM TESE, ORIGINÁRIA DOS DIREITOS POSSESSÓRIOS.  INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. NECESSIDADE DE INSTRUÇÃO DO PROCESSO PARA VERIFICAÇÃO CONCRETA DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DA USUCAPIÃO. SENTENÇA CASSADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM.  RECURSO PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0003752-62.2013.8.24.0104, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alex Heleno Santore, Oitava Câmara de Direito Civil, j. 26-09-2023).
Assim, diante da existência de interesse processual dos autores, a sentença merece ser desconstituída.
Por fim, deixa-se de aplicar a teoria da causa madura (art. 1.013, § 3º, do CPC) a fim de viabilizar ao juízo natural da causa (art. 5º, LIII, da CF), que possui contato direto com as partes e com o objeto litigioso, a produção de outras provas eventualmente necessárias ao adequado esclarecimento dos fatos (arts. 370 e 371 do CPC), eliminando-se riscos de nulidades por cerceamento probatório. 
Além disso, considera-se prudente oportunizar a prévia manifestação dos interessados sobre possíveis aspectos que não foram analisados no primeiro grau de jurisdição (art. 10 do e 493 CPC), evitando-se decisão surpresa. 
No mais, a devolução do processo ao juízo a quo para retomada dos trâmites preserva o direito de interposição de recurso contra a sentença (art. 994, I, do CPC), o que não ocorre quando o julgamento da causa é feito diretamente pelo Tribunal em sede de apelação.
II. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
1. Preliminares 
Não há preliminares em contrarrazões para análise. 
2. Admissibilidade
Presentes os pressupostos legais, admite-se o recurso. 
3. Mérito
Passa-se ao exame do mérito do recurso, antecipando-se que o caso é de desprovimento. 
Sustenta o Ministério Público do Estado de Santa Catarina que carecem os autores de interesse processual sob o argumento de que o imóvel objeto da demanda está localizado em loteamento irregular.
Sem razão, contudo.

+ Usucapião: qual documento é considerado “justo título”

Veja-se que o fato de o loteamento ser irregular e/ou a área do imóvel ser menor do que o módulo estabelecido pelo Município não impede, por si só, a eventual procedência da ação de usucapião (Tema n. 815 da Rep. Geral e Tema 985).
Colhe-se, neste sentido, da jurisprudência desta Corte:
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA.  AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. ENTENDIMENTO DE AQUISIÇÃO DERIVADA DO DOMÍNIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. EXTINÇÃO DO FEITO SEM ANÁLISE DO MÉRITO.  INSURGÊNCIA RECURSAL. ÁREA NÃO DESMEMBRADA QUE INVIABILIZA O REGISTRO DO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA PELA VIA ADMINISTRATIVA. IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO REGULAR DA PROPRIEDADE ANTE A ÁREA USUCAPIENDA ESTAR LOCALIZADA DENTRO DE UMA ÁREA MAIOR REGISTRADA, PORÉM, NÃO DESMEMBRADA, COMPONDO LOTEAMENTO URBANO CONSOLIDADO SEM ATENDER AO PARCELAMENTO DO SOLO COM PENDÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO ADMINISTRATIVA. EVENTUAL INOBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO (LEI N 6.766/79) QUE NÃO CONSTITUEM EM PRESSUPOSTO PARA AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA PELA VIA DA USUCAPIÃO. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EXTINÇÃO DO PROCESSO QUE SE AFIGURA PREMATURA.  TEORIA DA CAUSA MADURA. INAPLICABILIDADE. PROSSEGUIMENTO DO FEITO NA ORIGEM QUE SE IMPÕE. SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO. 1. “Ainda que o imóvel que se pretende usucapir integre loteamento irregular, tal circunstância não impede, per se, o reconhecimento da propriedade se for comprovado o atendimento aos pressupostos legais da usucapião. Admitir-se o contrário seria o mesmo que negar vigência ao instituto e criar requisito não albergado pela norma de regência” (TJSC, Apelação n. 0303832-83.2018.8.24.0004, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 22-11-2022). 2. “Os precedentes mais recentes acerca da temática têm permitido considerar, mesmo nas hipóteses de aquisição derivada da propriedade, que a ocupação há muito consolidada de determinada área, de sorte a preencher os requisitos da aquisição do domínio pela usucapião, pode ser buscada nesta via. É o caso, por exemplo, em que se revelar difícil ou impossível dar seguimento à obtenção do registro da propriedade com base no contrato de compra e venda por eventuais dificuldades apresentadas no caso concreto (REsp n. 1818564/DF, Min. Moura Ribeiro). Dessa forma, diante das dificuldades narradas no feito e não se evidenciando a má-fé dos adquirentes, é certo que o pedido de declaração da propriedade pela usucapião se afigura necessário e adequado para o fim pretendido, de sorte a tornar presentes as condições da ação.” (TJSC, Apelação n. 0301876-32.2015.8.24.0038, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 31-05-2022) (TJSC, Apelação n. 0303152-23.2017.8.24.0008, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Silvio Dagoberto Orsatto, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 17-08-2023).

+ Quando ocorre a perda da posse?

Ainda:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. RECURSO DOS AUTORES. EXTINÇÃO FUNDADA NA INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. IMÓVEL USUCAPIENDO INSERIDO EM ÁREA MAIOR REGISTRADA. CELEBRAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. JUÍZO DE ORIGEM QUE NÃO ADMITIU O PROCESSAMENTO DA AÇÃO POR NÃO VISUALIZAR IMPOSSIBILIDADE DE REGISTRO DA TRANSMISSÃO OU DA ADJUDICAÇÃO. PREMISSAS INSUBSISTENTES. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DE REGISTRO DE TRANSMISSÃO DE FRAÇÃO IDEAL. PROVIMENTO N. 13/1994 DA CORREGEDORIA-GERAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL QUE ADMITE A REGULARIZAÇÃO DE IMÓVEIS PELA USUCAPIÃO MEDIANTE DEMONSTRAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE OU EXCESSIVA DIFICULDADE NA REGULARIZAÇÃO ORDINÁRIA. IMÓVEL INSERIDO EM ÁREA MAIOR E QUE CONSTITUI LOTEAMENTO IRREGULAR. IMPOSSIBILIDADE DE DESMEMBRAMENTO. ÁREA USUCAPIENDA MENOR DO QUE O MÍNIMO PERMITIDO PELA LEI MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS N. 1.215/1974. NO ENTANTO, CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO OBSTA O RECONHECIMENT DA USUCAPIÃO. AUSÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO URBANÍSTICA DA ÁREA QUE NÃO OBSTA A AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DE IMÓVEL PARTICULAR MEDIANTE USUCAPIÃO. PRECEDENTES. EXTINÇÃO PREMATURA DO FEITO. SENTENÇA CASSADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0300394-50.2016.8.24.0091, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Eduardo Gallo Jr., Sexta Câmara de Direito Civil, j. 01-08-2023).

+ Qual a relação entre posse de boa-fé e usucapião?

Desta Câmara, inclusive:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO AUTORAL. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DEFENDIDA, EM SUMA, A INOBSERVÂNCIA DO REGULAR PROCEDIMENTO DE PARCELAMENTO DO SOLO, EM VIOLAÇÃO À LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO (LEI N. 6.766/79). INACOLHIMENTO. AUSÊNCIA DE DESMEMBRAMENTO E EXIGÊNCIAS DA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL QUE NÃO OBSTAM O RECONHECIMENTO DA USUCAPIÃO QUANDO PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGAIS. ENTENDIMENTO FIRMADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS (TEMAS 985 E 1.025). INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE QUE OS AUTORES PRETENDEM BURLAR OS TRÂMITES ADMINISTRATIVOS E FISCAIS. BOA-FÉ QUE SE PRESUME. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE DEVIDA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. “Ainda que o imóvel que se pretende usucapir integre loteamento irregular e não contenha a dimensão mínima delimitada pela norma municipal, tais circunstâncias não impedem, per se, o reconhecimento da propriedade se devidamente comprovado o atendimento aos pressupostos legais da usucapião. Admitir-se o contrário seria o mesmo que negar vigência ao instituto e criar requisito não albergado pela norma de regência. Objetivamente, “o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento dos requisitos específicos, não pode ser obstado em razão de a área usucapienda ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal. (STJ – Recurso Especial nº 1.667.842/SC [Tema nº 985], Segunda Seção, rel. Ministro Luis Felipe Salomão, j. em 3.12.2020).”  (TJSC, Apelação n. 0300299-80.2015.8.24.0050, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 13-09-2022) ÔNUS SUCUMBENCIAIS INALTERADOS. HONORÁRIOS RECURSAIS INDEVIDOS.  RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 5010292-06.2020.8.24.0004, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Joao Marcos Buch, Oitava Câmara de Direito Civil, j. 10-10-2023).
Neste contexto, não há que se falar, também, em falta de interesse de agir dos autores, devendo a demanda retornar ao juízo de origem para a devida continuidade.

+ Quais os efeitos da posse?

III. SUCUMBÊNCIA
Provido o recurso dos autores, com a cassação da sentença, sem a definição de parte sucumbente na demanda de origem, descabe a fixação ou majoração de honorários.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto no sentido de: a) conhecer do recurso dos autores e dar-lhe provimento,  a fim de cassar a sentença e determinar o retorno dos autos à origem para reabertura da instrução processual; b) conhecer e negar provimento ao recurso do Ministério Público do Estado de Santa Catarina. 

Documento eletrônico assinado por FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART FERNANDES, Desembargadora, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4146026v47 e do código CRC 40edcc37.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART FERNANDESData e Hora: 28/11/2023, às 15:14:54

Apelação Nº 0001373-85.2012.8.24.0104/SC

RELATORA: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART

+ Aquisição da posse: modo originário e derivado

APELANTE: CLARICIO CAITANO (AUTOR) APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP) APELANTE: ARACI FIDELIS CAITANO (AUTOR) APELADO: ANGELO DANTE BIZ (RÉU) APELADO: OS MESMOS

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA QUE EXTINGUIU O FEITO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. INCONFORMISMO DOS AUTORES E DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECURSO DA PARTE AUTORA. ALEGADA EXISTÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. ACOLHIMENTO. IMÓVEL USUCAPIENDO QUE NÃO FOI ADQUIRIDO DO PROPRIETÁRIO REGISTRAL. AQUISIÇÃO DERIVADA NÃO CONFIGURADA. RECURSO MINISTERIAL. TESE DE FALTA DE INTERESSE DE AGIR EM RAZÃO DE O IMÓVEL OBJETO DA DEMANDA ESTAR LOCALIZADO EM LOTEAMENTO CLANDESTINO. INSUBSISTÊNCIA. IRREGULARIDADE DO LOTEAMENTO QUE NÃO OBSTA, POR SI SÓ, A USUCAPIÃO. PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE. SENTENÇA CASSADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO. RECURSO DOS AUTORES CONHECIDO E PROVIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONHECIDO E DESPROVIDO. 

+ Emprestei um imóvel e a pessoa não quer mais sair. O que fazer?

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 8ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, a) conhecer do recurso dos autores e dar-lhe provimento, a fim de cassar a sentença e determinar o retorno dos autos à origem para reabertura da instrução processual; b) conhecer e negar provimento ao recurso do Ministério Público do Estado de Santa Catarina, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 28 de novembro de 2023.

Documento eletrônico assinado por FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART FERNANDES, Desembargadora, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4146028v8 e do código CRC d01e82d3.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART FERNANDESData e Hora: 28/11/2023, às 15:14:54

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 28/11/2023

Apelação Nº 0001373-85.2012.8.24.0104/SC

RELATORA: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART

+ Quem deve ser citado na ação de usucapião?

PRESIDENTE: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

PROCURADOR(A): SONIA MARIA DEMEDA GROISMAN PIARDI
APELANTE: CLARICIO CAITANO (AUTOR) ADVOGADO(A): Carlos Alberto Moser (OAB SC016898) APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP) APELANTE: ARACI FIDELIS CAITANO (AUTOR) ADVOGADO(A): Carlos Alberto Moser (OAB SC016898) APELADO: ANGELO DANTE BIZ (RÉU) APELADO: OS MESMOS
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 28/11/2023, na sequência 90, disponibilizada no DJe de 13/11/2023.
Certifico que a 8ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 8ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, A) CONHECER DO RECURSO DOS AUTORES E DAR-LHE PROVIMENTO, A FIM DE CASSAR A SENTENÇA E DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REABERTURA DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL; B) CONHECER E NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA.

RELATORA DO ACÓRDÃO: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART
Votante: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULARTVotante: Juiz JOAO MARCOS BUCHVotante: Juiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
MARCIA CRISTINA ULSENHEIMERSecretária

Fonte: TJSC

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