Usucapião e tempo de posse

Usucapião e tempo de posse: em se tratando de terreno baldio apenas se o possuidor fizer alguma alteração física de caráter mais duradouro no imóvel e que permita concluir por uma ocupação permanente (edificação de uma casa ou outro tipo de construção como regra), o ato atingirá a publicidade necessária capaz de se poder no mínimo presumir que o proprietário perdeu a posse do bem. E a falta de publicidade equivale à clandestinidade e impede inclusive a aquisição da propriedade por usucapião conforme o art. 1.208 do Código Civil.

Processo: 0001525-74.2014.8.24.0004 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Helio David Vieira Figueira dos Santos
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Civil
Julgado em: 08/02/2024
Classe: Apelação

Apelação Nº 0001525-74.2014.8.24.0004/SC

RELATOR: Desembargador HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS

APELANTE: ANTONIO DA ROCHA PEREIRA (AUTOR) ADVOGADO(A): RONALDO BOENO PRESTES (OAB SC046481) APELADO: ATIMO EMPREENDIMENTOS LTDA (RÉU) ADVOGADO(A): ALDIR NELSO SONAGLIO JUNIOR (OAB SC018612) ADVOGADO(A): MARCELO COLONETTI (OAB SC027166)

RELATÓRIO

Antonio da Rocha Pereira apela da sentença de improcedência proferida na ação de usucapião extraordinária que move contra Atimo Empreendimentos Ltda, relativa a imóvel inserido em áreas maiores (matrículas n. 2334 e 35.673 do CRI de Araranguá) sobre o qual diz exercer posse mansa e pacífica desde 1992.
O juízo considerou se tratar de terreno baldio, ponderando que ninguém fixou ali residência e que apenas se o possuidor fizesse “alguma alteração física de caráter mais duradouro” que caracterizasse ocupação permanente, “edificação de uma casa ou outro tipo de construção como regra”, o ato atingiria “a publicidade necessária capaz de se poder no mínimo presumir que o proprietário perdeu a posse do bem”. Consignou também que “a falta de publicidade equivale à clandestinidade e impede inclusive a aquisição da propriedade por usucapião conforme o art. 1.208 do Código Civil” (ev. 381.1).

O que é posse justa?

Nas razões recursais, o apelante aponta a intempestividade da contestação e, consequentemente, a revelia da ré, questão que não teria sido analisada pelo magistrado de origem, apesar de arguida oportunamente. No mérito, diz que as testemunhas confirmaram o tempo da posse e os atos realizados sobre o terreno, no qual afirma ter edificado sua residência, um galpão e outras acessões, e promovido atividade pecuária. Argumenta que o tempo transcorrido no decorrer da demanda deve ser considerado para contagem da prescrição aquisitiva. Alega, ainda, cerceamento de defesa, porque não determinada a produção de mais provas para formação do convencimento do togado. Almeja, assim, a juntada de fotos e outros documentos “novos” que comprovam a existência de construções e a utilização do bem como fonte de renda familiar. Pede a decretação da revelia da ré e a reforma da sentença, com a procedência do pedido inaugural (ev. 388.1)
Houve contrarrazões (ev. 396.1).
É o relatório do essencial.

+ Posso somar o tempo de posse de quem comprei o imóvel para fazer usucapião?

VOTO

Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso.
1. O apelante requer o reconhecimento da revelia da ré no intuito de que, desconsideradas as alegações da contestação, afaste-se a controvérsia instaurada, julgando-se procedente o pedido inaugural. Diz que a juntada do AR de citação deu-se em 02/05/2014, e a contestação apresentada em 28/08/2014, fora do prazo legal.
No entanto, consta do ev.  239.88 que o ofício de citação foi entregue ao representante legal (administrador) da empresa ré em 23/07/2014, e o AR juntado aos autos em 15/08:

A contestação realmente foi protocolada em 28/08/2014 (ev. 252.102), portanto no prazo de 15 dias previsto no art. 297 do CPC/73, à época vigente.
Logo, não há falar em revelia.
2. Igualmente, no mérito, não vejo como dar razão ao apelante.
A ação se fundamenta na hipótese do caput do art. 1.238 do Código Civil: usucapião pelo exercício da posse por 15 anos, sem interrupção, nem oposição, independentemente de justo título ou boa-fé.

O + O que é usucapião extraordinária?

É verdade que, de acordo com o entendimento do STJ, o período transcorrido no curso da demanda pode ser computado na contagem da prescrição aquisitiva, mesmo quando apresentada contestação. Cito:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. PRAZO. IMPLEMENTAÇÃO. CURSO DA DEMANDA. POSSIBILIDADE. FATO SUPERVENIENTE. ART. 462 DO CPC/1973. CONTESTAÇÃO. INTERRUPÇÃO DA POSSE. INEXISTÊNCIA. ASSISTENTE SIMPLES. ART. 50 DO CPC/1973.1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).2. Cinge-se a controvérsia a definir se é possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel na hipótese em que o requisito temporal (prazo para usucapir) previsto em lei é implementado no curso da demanda.3. A decisão deve refletir o estado de fato e de direito no momento de julgar a demanda, desde que guarde pertinência com a causa de pedir e com o pedido. Precedentes.4. O prazo, na ação de usucapião, pode ser completado no curso do processo, em conformidade com o disposto no art. 462 do CPC/1973 (correspondente ao art. 493 do CPC/2015).5. A contestação não tem a capacidade de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pelo autor, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião.6. A interrupção do prazo da prescrição aquisitiva somente poderia ocorrer na hipótese em que o proprietário do imóvel usucapiendo conseguisse reaver a posse para si. Precedentes.7. Na hipótese, havendo o transcurso do lapso vintenário na data da prolação da sentença e sendo reconhecido pelo tribunal de origem que estão presentes todos os demais requisitos da usucapião, deve ser julgado procedente o pedido autoral.[…] 9. Recurso especial provido (REsp n. 1.361.226/MG, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/6/2018, DJe de 9/8/2018.) (a exemplificar, veja-se: REsp n. 1.361.226/MG, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/6/2018, DJe de 9/8/2018) [grifei].
No entanto, mesmo considerando a data do presente julgamento, não há como declarar a usucapião. E isso já tendo em vista a possibilidade prevista no parágrafo único do supracitado art. 1.238 do CC, que reduz o prazo da prescrição aquisitiva a 10 anos no caso em que o possuidor tenha estabelecido sua moradia no imóvel.
Bem observou o juízo a quo que, nos termos do art. 1.224 do CC,”só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recupera-la, é violentamente repelido”. Daí a impossibilidade de se usucapir um terreno baldio, como explicado na sentença:

+ Quando ocorre a perda da posse?


Com raras exceções, em se tratando de terreno baldio apenas se o possuidor fizer alguma alteração física de caráter mais duradouro no imóvel e que permita concluir por uma ocupação permanente (edificação de uma casa ou outro tipo de construção como regra), o ato atingirá a publicidade necessária capaz de se poder no mínimo presumir que o proprietário perdeu a posse do bem. E a falta de publicidade equivale à clandestinidade e impede inclusive a aquisição da propriedade por usucapião conforme o art. 1.208 do Código Civil.
Do que se extrai da prova dos autos, pode-se dizer que justamente essa era a situação da área usucapienda ao menos até março de 2014. 
O apelante ajuizou a ação em 20/02/2014, quando ainda não residia no terreno. Na qualificação da inicial (ev. 204.1) e documentos que acompanharam a peça (ev. 206.8 e 206.9), o endereço indicado é outro (Rua Gonçalves Manoel Teixeira) e as fotos que ele mesmo apresentou na ocasião (ev. 206.32 e 206.33) revelam que no local havia apenas um casebre de madeira, construído, segundo as testemunhas, para servir de estrebaria.
De acordo com a perícia judicial, essas fotografias devem datar de janeiro daquele ano. Colhe-se do laudo (ev. 307.226):

No mesmo sentido é a fala da testemunha Valmir Luiz Innocenti, que em meados de 2013 firmou com a proprietária registral contrato de arrendamento da área maior em que localizadas as terras ocupadas pelo autor. O testigo esclareceu que o negócio só lhe autorizava fazer uso da parte que não fosse reserva ambiental (onde houvesse mata nativa, dunas e banhado), pelo que acabou realizando suas plantações apenas na área superior à aqui discutida. Disse que quando começou a preparar os terrenos não havia construção, só a cerca; não plantou porque se tratava de APP; não havia no local criação de animais; a cerca já era de concreto; não existia divisa entre a área que arrendou e a que o autor alega usucapião, isso só foi feito em 2015 ou 2016 (ev. 174.404).
Leonilton de Paula Carlos, funcionário da ré responsável por questões burocráticas alusivas ao imóvel, também referiu que a estrebaria foi edificada por volta de 2014; que a proprietária não utilizava aquela parte do terreno por causa das dunas; o autor queria arrendar a área para colocar cavalos, mas a empresa não quis, depois ele ingressou com a ação; os vizinhos da frente costumavam fazer caminhadas no local (ev. 174.405).
Os depoimentos de Amaro José Pereira e Giolcimar Sartor, arrolados pelo autor, trazem outra versão. 
O primeiro, que é proprietário de terreno próximo, afirmou que em 1992 o apelante já ocupava a área, onde teria colocado tinha cerca, um barraco e cavalos (ev. 174.406). 
O segundo, que é comerciante no município e conhece a área desde 2003, mencionou que naquela época já havia construção, porque o autor comprava material de sua loja para utilizar no local, onde tinha um galpão. Disse que o autor morava na frente e mantinha os animais na área usucapienda, onde agora reside, mais ou menos desde 2014 (ev. 174.407).
No entanto, trata-se de narrativa dissonante dos demais elementos de prova, inclusive os produzidos pelo próprio autor, como as fotos da inicial, que corroboram a constatação do perito do juízo em consulta ao Google Earth.
No ponto, vale destacar outra imagem, trazida com a contestação e também extraída dessa plataforma, a demonstrar o estado (aparentemente baldio) do terreno em 2014 (ev. 257.144):

O mesmo se pode extrair do Google Street View em relação ao ano de 2011:

Em resumo, não há como reconhecer a prescrição aquisitiva do imóvel pelo autor porque desde que ele passou a exercer atos capazes de ensejar a perda da posse pela proprietária (construção de estribaria, galpão, casa), no primeiro semestre de 2014, passaram menos de 15 anos; e desde o momento em que estabeleceu sua moradia no local, por volta de 2015 ou 2016, ainda não transcorreram 10 anos.

+ Qual o tempo de posse para usucapião de um imóvel


Por isso, a sentença de improcedência deve ser mantida. 
Cabível a fixação de honorários recursais em favor dos advogados da ré em 2% sobre o valor atualizado da causa, observado o disposto no art. 85, §§ 2º e 11, do CPC.
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e negar a ele provimento.

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Apelação Nº 0001525-74.2014.8.24.0004/SC

RELATOR: Desembargador HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS

APELANTE: ANTONIO DA ROCHA PEREIRA (AUTOR) ADVOGADO(A): RONALDO BOENO PRESTES (OAB SC046481) APELADO: ATIMO EMPREENDIMENTOS LTDA (RÉU) ADVOGADO(A): ALDIR NELSO SONAGLIO JUNIOR (OAB SC018612) ADVOGADO(A): MARCELO COLONETTI (OAB SC027166)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA SOB O FUNDAMENTO DE QUE SE TRATA DE TERRENO BALDIO, ONDE O AUTOR NÃO FIXOU RESIDÊNCIA, TAMPOUCO CONSTRUIU EDIFICAÇÃO QUE ATINJA A PUBLICIDADE NECESSÁRIA A FAZER PRESUMIR QUE A RÉ, PROPRIETÁRIA, PERDEU A POSSE. RECURSO DELE.
1. ALMEJADO RECONHECIMENTO DA REVELIA. IMPOSSIBILIDADE. CONTESTAÇÃO APRESENTADA NO PRAZO DA LEI, CONTADO DA JUNTADA DO AR DE CITAÇÃO DO REPRESENTANTE LEGAL DA RÉ.
2. MÉRITO. INSISTÊNCIA NO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DA USUCAPIÃO. TESE DE QUE SE DEVE CONSIDERAR O PERÍODO TRANSCORRIDO NO CURSO DA AÇÃO. CASO EM QUE, MESMO SE SOPESADO O TEMPO DE DURAÇÃO DO PROCESSO, NÃO SE OPEROU A PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. PROVA ORAL E DOCUMENTAL A INDICAR QUE EM 2014 O APELANTE CONSTRUIU NO LOCAL UMA ESTREBARIA, E POR VOLTA DE 2015 OU 2016 ESTABELECEU MORADIA. NÃO PREENCHIMENTO DE QUALQUER DAS HIPÓTESES DO ART. 1.238, CAPUT OU PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.
RECURSO CONHECIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 4ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e negar a ele provimento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 08 de fevereiro de 2024.

Documento eletrônico assinado por HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4377736v7 e do código CRC 4eeea614.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOSData e Hora: 9/2/2024, às 11:22:31

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 08/02/2024

Apelação Nº 0001525-74.2014.8.24.0004/SC

RELATOR: Desembargador HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS

PRESIDENTE: Desembargador LUIZ FELIPE SCHUCH

PROCURADOR(A): ALEXANDRE HERCULANO ABREU
APELANTE: ANTONIO DA ROCHA PEREIRA (AUTOR) ADVOGADO(A): RONALDO BOENO PRESTES (OAB SC046481) APELADO: ATIMO EMPREENDIMENTOS LTDA (RÉU) ADVOGADO(A): ALDIR NELSO SONAGLIO JUNIOR (OAB SC018612) ADVOGADO(A): MARCELO COLONETTI (OAB SC027166) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 08/02/2024, na sequência 23, disponibilizada no DJe de 22/01/2024.
Certifico que a 4ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 4ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E NEGAR A ELE PROVIMENTO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS
Votante: Desembargador HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOSVotante: Desembargador JOSÉ AGENOR DE ARAGÃOVotante: Desembargador SELSO DE OLIVEIRA
CLEIDE BRANDT NUNESSecretária

Fonte: TJSC

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