Usucapião e negócio jurídico: Não é todo e qualquer negócio jurídico envolvendo o bem que se pretende usucapir que fará desaparecer o interesse de agir para a propositura da ação de usucapião.
Processo: 0302056-67.2018.8.24.0030 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Renato Luiz Carvalho Roberge
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Sexta Câmara de Direito Civil
Julgado em: 06/02/2024
Classe: Apelação
Apelação Nº 0302056-67.2018.8.24.0030/SC
RELATOR: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE
APELANTE: CELIA TOBIAS PRODANS (AUTOR) APELANTE: RICHARD STEVEN PRODANS (AUTOR)
RELATÓRIO
Em suas razões recursais, sustentaram que estão preenchidas as condições da ação de usucapião, destacando que juntamente com seus antecessores detêm a posse do imóvel ininterrupta e sem oposição por prazo superior a vinte anos, não havendo outro meio adequado para obter o reconhecimento e a transmissão da propriedade, notadamente porque não adquiriram o bem do proprietário registral, mas de posseiro. Requereram, nesses termos, o conhecimento e o provimento do recurso (evento 22).
Não houve contrarrazões.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Procurador de Justiça Marcelo Wegner, “pelo conhecimento e desprovimento do recurso” (evento 8 – Eproc 2º grau).
+ Posso somar o tempo de posse de quem comprei o imóvel para fazer usucapião?
VOTO
Conheço do recurso, pois formalmente perfeito.
Indo direto ao ponto, tem-se a causa de pedir da pretensão à usucapião como centrada na narrativa de que “a aquisição do imóvel pelos autores se deu em agosto de 2018, onde o Sr. Carlos Eduardo Marsicano e sua esposa Laura Maria Marsicano perfectibilizaram a venda em favor dos autores. Em agosto de 1992 o Sr. Carlos adquiriu o imóvel mediante contrato de compra e venda do Sr. Antônio Adelino e sua esposa Vera Regina Adelino. Antes desse período, o imóvel pertenceu aos antigos possuidores por muitos anos, fato este notório entre os nativos da região”.
Como se vê, destacaram os autores/apelantes na exordial que o imóvel não foi adquirido diretamente do proprietário registral da gleba a qual pertence à área por eles adquirida, mas de terceiro. Tais assertivas encontram conforto nos documentos que repousam no evento 1 e no evento 46 dos autos na origem.
Pois bem. Conforme cediço, “a usucapião é procedimento que constitui modo originário de aquisição de propriedade por meio de posse mansa, pacífica e ininterrupta da coisa imóvel durante o prazo estabelecido em lei, desde que munido de animus domini”. É verdade que se tem alertado que “a usucapião consiste em aquisição originária da propriedade, ou seja, desvinculada de qualquer relação com o titular anterior, pressupõe, portanto, inexistência de uma transação ou alienação da coisa por um antigo proprietário, e também apaga os ônus que acompanham a coisa (vide TJSC, Apelação Cível n. 0008000-23.2013.8.24.0023, da Capital, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 10-12-2019)” (Apelação n. 0301283-30.2016.8.24.0050, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. designado (a) João de Nadal, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 11-07-2023).
De outro tanto, e “indo além, convém enfatizar que ‘os precedentes mais recentes acerca da temática têm permitido considerar, mesmo nas hipóteses de aquisição derivada da propriedade, que a ocupação há muito consolidada de determinada área, de sorte a preencher os requisitos da aquisição do domínio pela usucapião, pode ser buscada nesta via. É o caso, por exemplo, em que se revelar difícil ou impossível dar seguimento à obtenção do registro da propriedade com base no contrato de compra e venda por eventuais dificuldades apresentadas no caso concreto (REsp n. 1818564/DF, Min. Moura Ribeiro)’ (TJSC – Apelação Cível nº 0300106-92.2018.8.24.0104, de Ascurra, Quinta Câmara de Direito Civil, un., rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, j. em 31.05.2022). É essa, inclusive, a orientação emanada do Provimento nº 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que vê com bons olhos que o interessado, no procedimento da usucapião extrajudicial, exiba, como justo título, instrumentos que provem a existência de relação jurídica com o titular registral, dês que ‘justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários’ (art. 13, § 2º)” (Apelação n. 0300493-26.2019.8.24.0040, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 13-09-2022).
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese em sede de recursos repetitivos no sentido de que a aquisição por usucapião não pode ser obstaculizada só pelo fato de constar o imóvel de loteamento irregular, pendente de regularização urbanística (Tema n. 1.025). Vale dizer que, de per si, isso também não constitui óbice, bastando que estejam preenchidos os requisitos estabelecidos pelo legislador ordinário no Código Civil para usucapião – em suas diversas modalidades -, requisitos esses que, diga-se, não podem ser ampliados a fim de cercear a prescrição aquisitiva.
Na hipótese, afigura-se adequada a via manejada pela parte autora. A ela não se poderia exigir a escolha de meio administrativo ou judicial diverso, com a propositura, v.g., de ação de obrigação de fazer ou adjudicação compulsória, dado que, como se retira da narrativa acima, entre ela e o proprietário registral do imóvel (bem assim, gize-se, da gleba que o contemplou) não permeou vínculo direto e contra aquele que a antecedeu não poderia demandar o desmembramento e a transferência imobiliária.
Em situação similar, entendeu esta Corte que a aquisição a non domino “não tem eficácia para diretamente ensejar a transferência imobiliária, sendo inegável, porém, através dele, a demonstração da existência da posse com o ânimo de dono no período necessário à prescrição aquisitiva” (Apelação n. 0300146-19.2014.8.24.0103, rel. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 30-07-2020).
Tal demonstração, por certo, merece ser viabilizada aos apelantes.
Dessarte, a sentença é de ser cassada.
Voto por conhecer do recurso e dar-lhe provimento para desconstituir a sentença e possibilitar o prosseguimento do feito.
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Apelação Nº 0302056-67.2018.8.24.0030/SC
RELATOR: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE
APELANTE: CELIA TOBIAS PRODANS (AUTOR) APELANTE: RICHARD STEVEN PRODANS (AUTOR)
EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. RECURSO DA PARTE AUTORA. AQUISIÇÃO POR CONTRATO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA A NON DOMINO. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO DIRETO ENTRE A PARTE AUTORA E O PROPRIETÁRIO REGISTRAL DA GLEBA A QUAL PERTENCE O IMÓVEL EM DEBATE. CADEIA POSSESSÓRIA ANTERIOR. IMPOSSIBILIDADE DE OBTENÇÃO DA REGULARIZAÇÃO DA PROPRIEDADE POR OUTRO MEIO, ADMINISTRATIVO OU JUDICIAL. INOBSERVÂNCIA DE REGRA URBANÍSTICA QUE NÃO IMPEDE A PRETENSÃO À USUCAPIÃO (TEMA 1.025 DO STJ). SITUAÇÃO FÁTICA QUE SE ADEQUA À VIA USUCAPIENDA. SENTENÇA CASSADA. PRECEDENTES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
“…Não é todo e qualquer negócio jurídico envolvendo o bem que se pretende usucapir que fará desaparecer o interesse de agir para a propositura da ação de usucapião. É preciso que se demonstre a existência de relação jurídica de transmissão estabelecida entre o proponente e o proprietário registral do imóvel para que tome corpo a ideia de aquisição derivada da propriedade. Inviabilizada, por outro meio idôneo (administrativo ou judicial), a regularização da propriedade derivada de posse prolongada, é necessário e adequado percorrer-se a via formal da usucapião para que o possuidor consiga o que se quer, que, no fim das contar é o de pôr as mãos no título de propriedade do bem cuja posse detém” (TJSC, Apelação n. 0300496-26.2019.8.24.0040, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 13-09-2022).
+ Usucapião ou adjudicação compulsória?
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 6ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para desconstituir a sentença e possibilitar o prosseguimento do feito, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Florianópolis, 06 de fevereiro de 2024.
Documento eletrônico assinado por RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4373034v5 e do código CRC d1042a4a.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGEData e Hora: 7/2/2024, às 17:27:33
EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 06/02/2024
Apelação Nº 0302056-67.2018.8.24.0030/SC
RELATOR: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE
PRESIDENTE: Desembargador JOAO DE NADAL
PROCURADOR(A): CARLOS ALBERTO DE CARVALHO ROSA
APELANTE: CELIA TOBIAS PRODANS (AUTOR) ADVOGADO(A): CLAUDIA LUIZ DE SOUZA (OAB SC063414) ADVOGADO(A): RAFAEL SOUZA DA COSTA (OAB SC033258) APELANTE: RICHARD STEVEN PRODANS (AUTOR) ADVOGADO(A): RAFAEL SOUZA DA COSTA (OAB SC033258) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 06/02/2024, na sequência 79, disponibilizada no DJe de 22/01/2024.
Certifico que a 6ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 6ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO PARA DESCONSTITUIR A SENTENÇA E POSSIBILITAR O PROSSEGUIMENTO DO FEITO.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE
Votante: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGEVotante: Desembargador EDUARDO GALLO JR.Votante: Desembargador MARCOS FEY PROBST
JULIANA DE ALANO SCHEFFERSecretária
Fonte: TJSC
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