Usucapião e cadeia possessória

Usucapião e cadeia possessória: contrato particular de doação que envolve razoável cadeia possessória anterior.

Apelação Nº 5005159-07.2022.8.24.0135/SC

RELATOR: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE

APELANTE: RONILDO ROBERTO STREY (AUTOR)

RELATÓRIO

Ronildo Roberto Strey interpôs recurso de apelação contra a sentença proferida no evento 14 da ação de usucapião n. 5005159-07.2022.8.24.0135, que indeferiu a justiça gratuita postulada e extinguiu o processo sem resolução do mérito, por falta de interesse de agir.

+ Quais os parâmetros do TJSC para deferimento da justiça gratuita?

Em suas razões recursais, sustentou que estão preenchidas as condições tanto para o deferimento da justiça gratuita quanto para a ação de usucapião, destacando que somando o tempo de posse de seus antecessores, detém a posse do imóvel de forma ininterrupta e sem oposição por prazo superior a dez anos, não havendo outro meio adequado para obter o reconhecimento e a transmissão da propriedade, notadamente porque não o adquiriu do proprietário registral, mas de terceira pessoa. Requereu, nesses termos, o conhecimento e o provimento do recurso, além do deferimento da gratuidade da justiça (evento 17).
Não houve contrarrazões.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Procurador de Justiça Américo Bigaton, pela “anulação da sentença combatida, com o consequente retorno dos autos à origem para regular processamento” (evento 9 – Eproc 2º grau).

VOTO

Principio registrando que a conjugação da afirmação de se tratar de profissional autônomo – eletricista automotivo – com o teor da declaração de contribuinte pelo Simples Nacional aparelhada no evento 1-5 da origem constituem elementos suficientes para o acolhimento da insurreição no ponto que se volta à justiça gratuita, dado que constituem prova que fazem prevalecer a declaração de insuficiência econômica para fins de gratuidade da justiça, lembrando-se que este Tribunal tem conferido esse direito àqueles que não percebem renda que gire muito além do equivalente a três salários mínimos e que, a teor do disposto no § 2º do art. 99 do CPC, “O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade…”.
Prosseguindo em direção ao ponto nodal do recurso, adianto que a razão permanece com o recorrente.
É que a causa de pedir vem centrada na narrativa de que o autor “adquiriu” de Renate Heinz Strey “o imóvel situado no endereço: Rua Helmuth Baungartner, n. º 1.406, bairro Gravatá, […] no município de Navegantes/SC – em 20 de abril 2020”, sendo que essa “adquiriu o referido imóvel através de contrato de permuta em 15 de março de 2019” de Priscila Francisca Laurentino, que, por sua vez, “adquiriu o imóvel através de Contrato de Compra e Venda em 07 de novembro de 2012” de Edison José Piccoli e de Berenice de Oliveira Piccoli, “os quais são os proprietários registrais do referido imóvel” (evento 1).
Tais assertivas encontram conforto nos documentos que repousam no evento 1 dos autos na origem, dos quais se pode inferir, inclusive, que o autor/apelante recebeu o imóvel por meio de contrato de doação (contrato 9, pág. 8).
Dessarte, não se tem aqui pretensão que, desvirtuando a finalidade do tipo de ação eleita, venha na busca de meio não gravoso financeiramente a quem pretende obter a propriedade, dado que o recorrente, como se vê, não tem meios de fazer valer o contrato primitivo, aquele ajustado com os proprietários que constam do registro.
Sobre o tema tem-se assentado que “a usucapião é procedimento que constitui modo originário de aquisição de propriedade por meio de posse mansa, pacífica e ininterrupta da coisa imóvel durante o prazo estabelecido em lei, desde que munido de animus domini”, havendo sobre a questão se alertado que “…consiste em aquisição originária da propriedade, ou seja, desvinculada de qualquer relação com o titular anterior, pressupõe, portanto, inexistência de uma transação ou alienação da coisa por um antigo proprietário, e também apaga os ônus que acompanham a coisa (vide TJSC, Apelação Cível n. 0008000-23.2013.8.24.0023, da Capital, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 10-12-2019)” (Apelação n. 0301283-30.2016.8.24.0050, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. designado (a) João de Nadal, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 11-07-2023).
Adiante, “…convém enfatizar que ‘os precedentes mais recentes acerca da temática têm permitido considerar, mesmo nas hipóteses de aquisição derivada da propriedade, que a ocupação há muito consolidada de determinada área, de sorte a preencher os requisitos da aquisição do domínio pela usucapião, pode ser buscada nesta via. É o caso, por exemplo, em que se revelar difícil ou impossível dar seguimento à obtenção do registro da propriedade com base no contrato de compra e venda por eventuais dificuldades apresentadas no caso concreto (REsp n. 1818564/DF, Min. Moura Ribeiro)’ (TJSC – Apelação Cível nº 0300106-92.2018.8.24.0104, de Ascurra, Quinta Câmara de Direito Civil, un., rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, j. em 31.05.2022). É essa, inclusive, a orientação emanada do Provimento nº 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que vê com bons olhos que o interessado, no procedimento da usucapião extrajudicial, exiba, como justo título, instrumentos que provem a existência de relação jurídica com o titular registral, dês que ‘justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários’ (art. 13, § 2º)” (Apelação n. 0300493-26.2019.8.24.0040, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 13-09-2022).
Na hipótese, afigura-se adequada a via manejada pela parte autora. Afinal, não se há como exigir a escolha de meio administrativo ou judicial diverso, com a propositura, v.g., de ação de obrigação de fazer ou adjudicação compulsória, dado que, como se retira da narrativa acima, entre o recorrente e os proprietários registrais do imóvel não permeou vínculo direto e contra aquele que a antecedeu não poderia demandar a transferência imobiliária.
Em situação similar, entendeu esta Corte que a aquisição a non domino “não tem eficácia para diretamente ensejar a transferência imobiliária, sendo inegável, porém, através dele, a demonstração da existência da posse com o ânimo de dono no período necessário à prescrição aquisitiva” (Apelação n. 0300146-19.2014.8.24.0103, rel. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 30-07-2020). 
Tal demonstração, por certo, merece ser viabilizada ao apelante.
Dessarte, a sentença é de ser cassada.
Voto por conhecer do recurso e dar-lhe provimento para deferir ao recorrente a justiça gratuita e para desconstituir a sentença e possibilitar o prosseguimento da ação.

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Apelação Nº 5005159-07.2022.8.24.0135/SC

RELATOR: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE

APELANTE: RONILDO ROBERTO STREY (AUTOR)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DE USUCAPIÃO. REJEIÇÃO DO PEDIDO DE GRATUIDADE DA JUSTIÇA E RECONHECIMENTO DA FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL PARA A VIA ELEITA. DECLARAÇÃO DE INSUFICIÊNCIA ECONÔMICA CORROBORADA PELA QUALIDADE DE PROFISSIONAL AUTÔNOMO – ELETRICISTA AUTOMOTIVO – COM O TEOR DA RENDA QUE SE INFERE NA DECLARAÇÃO PRESTADA AO SIMPLES NACIONAL. BENEFÍCIO CONCEDIDO. DIREITO À USUCAPIÃO. IMÓVEL RECEBIDO POR CONTRATO PARTICULAR DE DOAÇÃO E QUE ENVOLVE RAZOÁVEL CADEIA POSSESSÓRIA ANTERIOR. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO DIRETO ENTRE A AUTOR/RECORRENTE E O PROPRIETÁRIO REGISTRAL. IMPOSSIBILIDADE DE OBTENÇÃO DA REGULARIZAÇÃO DA PROPRIEDADE POR OUTRO MEIO, ADMINISTRATIVO OU JUDICIAL. SITUAÇÃO FÁTICA QUE SE ADEQUA À VIA USUCAPIENDA. SENTENÇA CASSADA. PRECEDENTES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 6ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para deferir ao recorrente a justiça gratuita e para desconstituir a sentença e possibilitar o prosseguimento da ação, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 06 de fevereiro de 2024.

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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 06/02/2024

Apelação Nº 5005159-07.2022.8.24.0135/SC

RELATOR: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE

PRESIDENTE: Desembargador JOAO DE NADAL

PROCURADOR(A): CARLOS ALBERTO DE CARVALHO ROSA
APELANTE: RONILDO ROBERTO STREY (AUTOR) ADVOGADO(A): GUSTAVO HENRIQUE MACHADO (OAB SC027559) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 06/02/2024, na sequência 80, disponibilizada no DJe de 22/01/2024.
Certifico que a 6ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 6ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO PARA DEFERIR AO RECORRENTE A JUSTIÇA GRATUITA E PARA DESCONSTITUIR A SENTENÇA E POSSIBILITAR O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE
Votante: Juiz RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGEVotante: Desembargador EDUARDO GALLO JR.Votante: Desembargador MARCOS FEY PROBST
JULIANA DE ALANO SCHEFFERSecretária

Fonte: TJSC

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