Usucapião e permissão de uso

Usucapião e permissão de uso: por possuir um imóvel entende-se, na linguagem jurídica, ocupá-lo com a intenção de dono, e não simplesmente detê-lo e, nessa condição, jamais a posse se aperfeiçoaria na espécie. Se o possuidor não puder utilizar-se da posse interdicta, ou da posse ad usucapionem, por certo não será possuidor, senão mero detentor da coisa

Apelação Nº 0304100-68.2014.8.24.0040/SC

RELATOR: Desembargador SÉRGIO IZIDORO HEIL

APELANTE: BALNEARIO LAGUNA LIMITADA (RÉU) ADVOGADO(A): RAFAEL DA SILVA TROMBIM (OAB SC017649) APELADO: CIBELE LIMA DOS SANTOS (AUTOR) ADVOGADO(A): FABIANO MARQUES DA SILVA (OAB SC050115)

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação interposto por Balneário Laguna Ltda. contra a sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Cível da comarca de laguna que, nos autos da ação de usucapião extraordinário ajuizada por Cibele Lima dos Santos, julgou o feito procedente, nos seguintes termos:

+ O que é usucapião extraordinária?

Do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido deduzido na petição inicial (art. 487, I, do CPC), para DECLARAR o domínio sobre o imóvel descrito nos autos (Ev. 1, Informação 5) em favor da autora, servindo a presente decisão como título para registro junto ao Ofício de Registro de Imóveis.
CONDENO a parte ré ao pagamento das despesas processuais pendentes, conforme arts. 86 e 87 do CPC. Está igualmente obrigada a indenizar as despesas adiantadas no curso do processo pela parte vencedora, conforme art. 82, § 2º, do CPC. Fixo os honorários sucumbenciais devidos pela parte ré no valor de R$ 2.500,00 (art. 85, § 8º, do CPC).
Após o trânsito em julgado e o recolhimento das custas, EXPEÇA-SE mandado ao Oficial do Cartório de Registro de Imóveis, consignando a descrição do imóvel objeto da demanda, constante das folhas dos autos devidamente identificadas, nos termos do art. 226 da Lei 6.015/1973.
P.R.I.
Após o trânsito em julgado, arquive-se. (evento 118, origem)
Sustenta, em síntese, que: “ao contrário do que inveridicamente afirma a inicial e equivocadamente consagrado pela sentença, a autora jamais deteve o animus domini, ao passo que recebeu unicamente a permissão de uso do imóvel”; “a autora não produziu uma única prova sequer que detém o imóvel com animus domini, visto que mesmo intimada NÃO compareceu na audiência de instrução e julgado (evento 111), deixando de prestar depoimento pessoal e inquirir qualquer testemunha acerca dos fatos alegados na inicial”; os honorários sucumbenciais deveriam ter sido fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa (evento 123, origem).
A parte apelada apresentou contrarrazões no evento 135, origem.
No parecer de evento 17, a Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se “no sentido de que seja o presente recurso conhecido e provido, de modo que (i) o imóvel reivindicado na ação seja preservado no acervo da massa falida da sociedade recorrente, bem como (ii) seja revisto o critério para arbitramento dos honorários sucumbenciais, o qual deve considerar o verdadeiro proveito econômico deduzido da causa assim como o disposto no artigo 85, § 2º, do Código de Processo Civil. Oportunamente, quanto ao pedido incidental de justiça gratuita formulado pela apelada em contrarrazões, deve este ser julgado improcedente, na medida em que a parte não logrou êxito em comprovar a alteração da sua situação econômica e a sua contemporânea hipossuficiência”.
É o relatório.

VOTO

De início, vale esclarecer que tanto a prolação da decisão recorrida quanto a interposição do recurso sucederam à entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), de modo que os pressupostos de admissibilidade recursal devem observar o regramento disposto no novo diploma, consoante previsto no Enunciado Administrativo n. 3 do STJ.
Dito isso, porque preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos de admissibilidade, o recurso deve ser conhecido.
De acordo com o art. 1.241 do Código Civil, “poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel”.
Para que a ação tenha êxito, é necessário que o alegado possuidor do bem preencha os requisitos exigidos no ordenamento jurídico pátrio. Especificamente em relação à ação de usucapião extraordinário – caso dos autos -, devem ser observados os pressupostos contidos no art. 1.238 do Código Civil, in verbis:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
A declaração da prescrição aquisitiva consiste no reconhecimento jurídico da possibilidade de registro (consolidação) – e, portanto de publicização – de uma situação de fato que se perpetuou no tempo. Ou seja, a usucapião importará tão somente na publicização da propriedade (de seu detentor) da área, mediante o registro imobiliário, que de fato já é exercida ao longo dos anos.
A ação tem como objetivo, portanto, a declaração pública da existência de longo vínculo de fato de determinada pessoa com a coisa objeto de apropriação, com a constituição de assento em registro público imobiliário (em casos como o presente, em que se discute a aquisição da propriedade de bem imóvel).
Assim, o fundamento jurídico de relevância para se solucionar o caso concreto deve ser o exercício da posse mansa e pacífica do bem pelo prazo estabelecido em lei.
In casu, postula a parte autora que lhe seja declarada a propriedade do seguinte imóvel:
Uma garagem, denominada “Garagem nº 6” com área construída de 23,10 m², situada no pavimento térreo do Edifício Residencial “ANITA”, localizado na rua Cláudio Horn, Praia do Gi, em Laguna/SC, registrada no “Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Laguna”, com Matrícula de nº 29.341, Livro nº 2 EX, fls. 21, em 31 de maio de 2010, em nome de BALNEÁRIO LAGUNA LTDA, CGC nº 83.651.042/0002- 09, com sede na Praça Nereu Ramos, nº 114, Centro, Criciúma/SC, CEP 88801-505.
À inicial, explica que adquiriu os direitos de posse do bem de seu genitor que, “no ano de 1989 adquiriu o apartamento de número 13 (treze), inclusive junto com a ‘garagem nº 6’, objeto da presente demanda”, o qual foi deixado de herança após o falecimento deste.
Afirma exercer a posse de boa-fé e pelo transcurso de tempo necessário à pretensão. Defende nunca ter perdido sua posse e o caráter manso e pacífico do referido imóvel.

+ O que é posse de boa-fé?

A tese inaugural, contudo, foi rebatida pela parte ré, que sustentou basicamente que “a autora jamais deteve o animus domini, ao passo que unicamente restou permissão de uso da referida garagem”. 
Sentenciado o feito, compreendeu o magistrado singular que:
E nesse ponto deve-se sublinhar que a parte autora possui razão. Isso porque colacionou aos autos inúmeros documentos que revelam ser muito mais crível sua tese. Quando seu genitor negociou, junto à ré, a compra o apartamento de n. 13 de condomínio Anita, tudo leva a crer que a garagem também abarcava a negociação, como referido na inicial.
Primeiramente porque a matrícula da unidade imobiliária (apartamento n. 13 – Edifício Anita) foi confeccionada no ano de 1976, conforme Informação 19, Ev. 9, ao passo que a matrícula da vaga de garagem foi criada apenas em 2010 (Evento 1, Informação 5), mediante pedido de abertura de matrícula formulado pela ré, na forma do art. 176 da Lei n. 6.015/73.
Ou seja, decorreram 34 anos desde o registro do apartamento até a o “nascimento jurídico” da garagem, que já existia, mas apenas de fato.
Acontece que, em 2009, a parte autora já havia cumprido os requisitos da prescrição aquisitiva, de modo que não poderia a ré ter ignorado tal circunstância, em clara tentativa de “atravessar” a propriedade originariamente adquirida pela autora, por meio da abertura de matrícula do bem (vaga de garagem), sob pena de se perpetrar manifesta injustiça, além de violação ao princípio da função social da propriedade.
A posse mansa, ininterrupta e com animus domini pode ser extraída dos documentos anexados pela autora, que se alinham com a narrativa fática, sobressaindo, em último termo, a boa fé da parte postulante.
A ré, por sua vez, alegou fato modificativo/extintivo do direito da autora, qual seja, a existência de detenção, que impede a ocorrência de usucapião. Segundo sustenta, a autora nunca exerceu posse sobre a vaga de garagem.

+ Qual a diferença entre posse e detenção?

Ora, como se sabe, àquele que alega fato modificativo ou extintivo do direito da parte autora, incumbe o ônus da prova (art. 373, II do CPC). Ocorre que o único documento trazido pelo réu foi a procuração outorgada aos seus causídicos. Nada mais. A sentença, todavia, deve ser reformada, porque, conforme bem observado pela Procuradoria-Geral de Justiça em sua manifestação, os documentos contidos nos autos não são suficientes à demonstração da posse, requisito este indispensável para a procedência da ação de usucapião.
Nesse sentido, adotam-se as razões de decidir do Parquet, por com elas concordar na íntegra:
Ao fazer prova do direito reivindicado, no entanto, observa-se que a parte deixou de relacionar qualquer documento que corroborasse minimamente a posse desfrutada, a sua qualidade, o seu interregno, assim como as benfeitorias aludidamente realizadas.
De fato, a ação é instruída unicamente com: (i) uma procuração ad judicia; (ii) uma declaração de pobreza; (iii) a certidão de nascimento da recorrida; (iv) a matrícula imobiliária do bem reivindicado; (v) o memorial descritivo do imóvel usucapiendo e a sua planta, devidamente acompanhados do registro de responsabilidade técnica do arquiteto que os produziu; (vi) demonstrativo de folha de pagamento; (vii) a escritura de compra e venda mediante a qual o genitor da recorrida, Valério Rocha dos Santos, adquiriu o apartamento de n. 13, no Edifício Residencial Anita, do vendedor Jorge da Silva Alvez; (viii) a matrícula imobiliária do correspondente apartamento; e (ix) algumas petições avulsas e o relatório das movimentações processuais da ação de inventário de Valério Rocha dos Santos.
A toda evidência, dita documentação se mostra em tudo insuficiente para comprovação da posse, da sua qualidade, do animus domini da apelada, assim como da sua perpetuação no tempo.
Com efeito, não se juntou ao menos uma declaração de vizinhos que reconhecessem a posse da apelada, tampouco comprovantes de IPTU, compromisso de compra e venda, fotos ou outro registro assemelhado que permitisse averiguar o direito reivindicado, de modo que surpreende o fato da usucapião ter sido julgada procedente neste contexto.
Ademais, em audiência de instrução, a apelada e o seu procurador sequer se dignaram a se fazerem presentes, tendo perdido a oportunidade de produção de prova oral e de conferir alguma idoneidade ao domínio pretendido.
Acrescenta-se que, como lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, “por possuir um imóvel entende-se, na linguagem jurídica, ocupá-lo com a intenção de dono, e não simplesmente detê-lo e, nessa condição, jamais a posse se aperfeiçoaria na espécie. Se o possuidor não puder utilizar-se da posse interdicta, ou da posse ad usucapionem, por certo não será possuidor, senão mero detentor da coisa (1.ºTECivSP[Cahali, Posse, p. 32 – RT 589/142])”.
Assim, há de se reformar a sentença, a fim de que sejam julgados improcedentes os pedidos formulados à inicial.
Por fim, com a alteração do julgado, devem ser redistribuídos os ônus sucumbenciais.
Com isso, incumbirá à parte autora o pagamento das despesas processuais e dos honorários advocatícios, estabelecidos neste julgado no montante de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa. Por conseguinte, resta prejudicada a análise do pedido de reforma da sentença no tópico.
Ademais, inviável estabelecer os honorários recursais, dado o parcial provimento do recurso (art. 85, §§ 2º e 11, do Código de Processo Civil).
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e negar-lhe provimento, a fim de que sejam julgados improcedentes os pedidos formulados à inicial; por conseguinte, redistribuem-se os ônus sucumbenciais e arbitra-se a verba honorária, tudo nos termos da fundamentação.

+ Quem mora de favor pode pedir usucapião?

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Apelação Nº 0304100-68.2014.8.24.0040/SC

RELATOR: Desembargador SÉRGIO IZIDORO HEIL

APELANTE: BALNEARIO LAGUNA LIMITADA (RÉU) ADVOGADO(A): RAFAEL DA SILVA TROMBIM (OAB SC017649) APELADO: CIBELE LIMA DOS SANTOS (AUTOR) ADVOGADO(A): FABIANO MARQUES DA SILVA (OAB SC050115)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. INCONFORMISMO DA PARTE RÉ. ALEGAÇÃO DE QUE A PARTE AUTORA É APENAS DETENTORA DO BEM, E NUNCA POSSUIU O ANIMUS DOMINI DO IMÓVEL EM DISCUSSÃO. MERA PERMISSÃO DE USO. TESE ACOLHIDA. PARTE AUTORA QUE NÃO DEMONSTROU NO FEITO SER POSSUIDORA DO BEM, NÃO OBSTANTE TENHA SIDO OPORTUNIZADA A PRODUÇÃO DE PROVA ORAL. ÔNUS QUE LHE INCUMBIA, POR FORÇA DO ART. 373, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SENTENÇA REFORMADA. REDISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS SUCUMBENCIAIS. APELO CONHECIDO E PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 3ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e negar-lhe provimento, a fim de que sejam julgados improcedentes os pedidos formulados à inicial; por conseguinte, redistribuem-se os ônus sucumbenciais e arbitra-se a verba honorária, tudo, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 06 de fevereiro de 2024.

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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 06/02/2024

Apelação Nº 0304100-68.2014.8.24.0040/SC

RELATOR: Desembargador SÉRGIO IZIDORO HEIL

PRESIDENTE: Desembargadora MARIA DO ROCIO LUZ SANTA RITTA

PROCURADOR(A): ANDREAS EISELE
APELANTE: BALNEARIO LAGUNA LIMITADA (RÉU) ADVOGADO(A): RAFAEL DA SILVA TROMBIM (OAB SC017649) APELADO: CIBELE LIMA DOS SANTOS (AUTOR) ADVOGADO(A): FABIANO MARQUES DA SILVA (OAB SC050115) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 06/02/2024, na sequência 87, disponibilizada no DJe de 22/01/2024.
Certifico que a 3ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 3ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E NEGAR-LHE PROVIMENTO, A FIM DE QUE SEJAM JULGADOS IMPROCEDENTES OS PEDIDOS FORMULADOS À INICIAL; POR CONSEGUINTE, REDISTRIBUEM-SE OS ÔNUS SUCUMBENCIAIS E ARBITRA-SE A VERBA HONORÁRIA, TUDO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador SÉRGIO IZIDORO HEIL
Votante: Desembargador SÉRGIO IZIDORO HEILVotante: Desembargador SAUL STEILVotante: Desembargador ANDRÉ CARVALHO
PRISCILA LEONEL VIEIRASecretária

Fonte: TJSC

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