Possibilidade de Alteração do Caráter da Posse em Usucapião

martelo de juiz
Usucapião: caráter da posse

Usucapião: caráter da posse. Presume-se que a posse mantém o mesmo caráter [qualidade] com que foi originalmente adquirida. Porém, essa presunção é relativa e admite prova em contrário, conforme disposição legal expressa [CC, art. 1.203]. É teoricamente possível, portanto, a produção de provas que afastem a presunção de continuidade da posse precária e demonstrem a transmudação para a posse ad usucapionem.

Indeferimento da petição inicial

No caso em destaque, o magistrado de primeira instância indeferiu a petição inicial de uma ação de usucapião, fundamentando sua decisão na ausência de interesse de agir dos apelantes, que possuíam apenas a mera detenção do bem, sem os requisitos necessários para a aquisição da propriedade.

Apelação

Os apelantes entraram na posse de um imóvel em 2001, por meio de um contrato de parceria agrícola celebrado com os proprietários registrais, que eram os pais de uma das apelantes. A relação contratual durou até 2015, mas os apelantes narram que, após o término do contrato, permaneceram na posse do imóvel até 2021, sem oposição e com intenção de donos, até serem notificados para desocupação.

Alteração do caráter da posse para usucapião

A legislação brasileira estabelece que a posse mantém a mesma qualidade com que foi originalmente adquirida. Essa presunção, contudo, é relativa e admite prova em contrário. Portanto, é possível, por meio de provas, demonstrar a transformação da posse precária (decorrente de um contrato ou permissão) em posse ad usucapionem, apta a ensejar a usucapião.

Controvérsia

O ponto de controvérsia no caso citado reside no fato de que a sentença extinguiu o processo pela falta de interesse de agir, adentrando, de forma prematura, no mérito da causa. Isso porque não foi dada aos apelantes a oportunidade de provar a existência de posse ad usucapionem, sendo esta uma responsabilidade que lhes compete.

Posse versus detenção

O caso ilustra a importância de distinguir entre a mera detenção de um bem e a posse qualificada necessária para reivindicar a propriedade por usucapião, além de destacar a possibilidade da alteração do caráter da posse.

Processo: 5015278-13.2021.8.24.0054 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Alexandre Morais da Rosa
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Oitava Câmara de Direito Civil
Julgado em: 19/12/2023
Classe: Apelação Citações – Art. 927, CPC: Súmulas STJ:7

Apelação Nº 5015278-13.2021.8.24.0054/SC

+ Usucapião ou adjudicação compulsória?

RELATOR: Juiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA

APELANTE: LEOPOLDO HANG (AUTOR) APELANTE: SINEIDE SCHUTZ HANG (AUTOR) APELADO: AGINILDA NEUHAUS SCHUTZ (RÉU) APELADO: CELSO SCHUTZ (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação em que figuram como apelantes LEOPOLDO HANG e SINEIDE SCHUTZ HANG e apelados AGINILDA NEUHAUS SCHUTZ e CELSO SCHUTZ, interposto contra sentença proferida pelo juízo de origem nos autos n. 50152781320218240054.
Em atenção aos princípios da celeridade e economia processual [CR, art. 5º, inciso LXXVIII], adoto o relatório da sentença como parte integrante deste acórdão, por refletir com fidelidade o trâmite processual na origem:
SINEIDE SCHUTZ HANG e LEOPOLDO HANG, qualificados nos autos, ingressaram com a presente AÇÃO DE USUCAPIÃO, alegando como causa de pedir da tutela jurisdicional:
– que há mais de 20 anos residem em imóvel rural que ocupa parte de outros dois imóveis, na Localidade de Rio das Pedras, Aurora, com área de 123.205,80m² (cento e vinte e três mil, duzentos e cinco metros e oitenta centímetros quadrados), didivo em três glebas em decorrência da implantação de estrada municipal.
– que o imóvel cuja aquisição pretendem ocupa parte de outros dois imóveis, matriculados sob n. 5.670 e 5.667, ambos registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis de Rio do Sul em nome de Celso Schutz.
– que entre os anos de 2001 e 2015 havia contrato de parceria agrícola entre os autores e o proprietário registral dos imóveis para utilização de área de 3 (três) a 6 (seis) hectares.
– que desde a extinção do último contrato de parceria, no ano de 2015, os autores permaneceram na posse do bem usucapiendo, com ânimo de donos, totalizando mais de 5 (cinco) anos.
– que em 12/04/2021 o proprietário registral dos imóveis notificou os autores para a desocupação do imóvel, cuja impugnação foi apresentada pelos autores em 22/04/2021.
Pugnaram, ao final, pela concessão dos benefícios da Justiça Gratuita e pela declaração de domínio do imóvel usucapiendo sob o argumento de que exercem a posse mansa, pacífica, ininterrupta, sem oposição e com ânimo de dono por 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, com fundamento no artigo 1.239 do Código Civil Brasileiro.
Fizeram os requerimentos de estilo, valoraram a causa e juntaram documentos.
Vieram-me os autos conclusos.
Sentença [ev. 10]: indeferiu a petição inicial e julgou extinto o processo, sem resolução de mérito [CPC, art. 485, I, c/c art. 300, III];
Razões recursais [ev. 21]: sustenta a parte apelante a ocorrência de cerceamento de prova, com pedido de cassação da sentença e retorno dos autos à origem para regular prosseguimento.
Contrarrazões [ev. 31]: a parte apelada, por sua vez, postula pelo desprovimento do recurso.
Ministério público [ev. 12]: manifestou-se pela ausência de interesse público ou social relevante que justifique a atuação ministerial no processo.
É o relatório.

+ Qual o tempo de posse necessário para a usucapião de um imóvel

VOTO

Trata-se de recurso de apelação interposto por LEOPOLDO HANG e SINEIDE SCHUTZ HANG contra sentença que indeferiu a petição inicial e julgou extinta, sem resolução de mérito, a ação de usucapião ajuizada pelos apelantes.
1. ADMISSIBILIDADE
Preenchidos os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Os apelantes são beneficiários da justiça gratuita [ev. 10].
2. MÉRITO RECURSAL
O magistrado a quo indeferiu a petição inicial, com fundamento, em suma, na falta de interesse de agir dos apelantes, porque constatada apenas a mera detenção do bem, ausentes os requisitos à pretensão aquisitiva.
A usucapião constitui forma de aquisição originária pelo exercício qualificado da posse por aquele que exerce, com ânimo de dono, algum dos poderes inerentes à propriedade [CC, arts. 1.196 e 1.228]. 
Não é qualquer posse, portanto, que justifica a aquisição do domínio, mas apenas a posse ad usucapionem, exercida com animus domini, ou seja, com nítida intenção de dono. 
Os atos de mera permissão ou tolerância, nesse cenário, não induzem a posse qualificada [CC, art. 1.208].
No caso concreto, a sentença observou que os apelantes ingressaram na posse do imóvel em 2001, em razão de contrato de parceria agrícola celebrado com os proprietários registrais, genitores da apelante [ev. 1.15]. A relação contratual perdurou até 26.10.2015 [ev. 1.17]. 

+ É possível usucapião de automóvel ou de outro bem móvel?

Os apelantes, contudo, não pretendem a consideração desse prazo contratual como período aquisitivo. Narram que, findo o contrato de parceria agrícola, permaneceram na posse do imóvel até 14.04.2021, sem oposição e com ânimos de dono, quando foram então notificados para desocupação.
Presume-se que a posse mantém o mesmo caráter [qualidade] com que foi originalmente adquirida. Porém, essa presunção é relativa e admite prova em contrário, conforme disposição legal expressa [CC, art. 1.203]. É teoricamente possível, portanto, a produção de provas que afastem a presunção de continuidade da posse precária e demonstrem a transmudação para a posse ad usucapionem.
Embora a sentença tenha fundamentado a extinção na falta de interesse de agir, percebe-se que houve verdadeira incursão precoce no mérito, com análise do pedido formulado, à luz da causa de pedir exposta, mas sem possibilitar aos apelantes a prova da posse ad usucapionem, cujo ônus probatório lhes compete. A conclusão pelo indeferimento da inicial foi, por certo, prematura.
Sobre a possibilidade de transmudação da posse, já decidiu o STJ:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE DECIDIU TODAS AS QUESTÕES POSTAS DE MANEIRA CLARA E COM FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. INÍCIO DA POSSE EM DECORRÊNCIA DE CONTRATO DE PARCERIA AGRÍCOLA. TÉRMINO DO PRAZO SEM QUALQUER REIVINDICAÇÃO PELOS PROPRIETÁRIOS. TRANSMUDAÇÃO DA NATUREZA DA POSSE. POSSIBILIDADE. REQUISITOS DA USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA PREENCHIDOS. REVISÃO DESTES ENTENDIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 07/STJ. RAZÕES QUE SE MANTÉM. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. [STJ. AgInt no AREsp n. 1.893.626/PR. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Terceira Turma. Julgado em 10.10.2022].
E este Tribunal:
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA FUNDAMENTADA NA HIPÓTESE DE DETENÇÃO DOS AUTORES, QUE TERIAM OCUPADO O IMÓVEL POR MERA TOLERÂNCIA DA EMPRESA RÉ. RECURSO DOS DEMANDANTES. DEFENDIDO EXERCÍCIO DA POSSE EM NOME PRÓPRIO. ACOLHIMENTO. CASO EM QUE O PRIMEIRO AUTOR FOI SÓCIO DA EMPRESA RÉ, MAS EM 1997 DEIXOU SEU QUADRO SOCIETÁRIO E PASSOU A EXERCER A POSSE EM NOME PRÓPRIO. TRANSMUDAÇÃO DA DETENÇÃO EM POSSE AD USUCAPIONEM BEM DEMONSTRADA. ART. 1.198, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC. TRANSCURSO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA DE 15 ANOS DO ART. 1.238 DO ATUAL CC, QUE SE DEU NO CURSO DA LIDE, SEM NOTÍCIA DE OPOSIÇÃO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. SENTENÇA REFORMADA. ÔNUS SUCUMBENCIAIS INVERTIDOS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.[TJSC. Apelação n. 0000817-65.2010.8.24.0068. Relator: Des. Helio David Vieira Figueira dos Santos. Quarta Câmara de Direito Civil. Julgada em 27.04.2023].

+ Usucapião: requisitos e documentos necessários

Logo, faz-se necessário desconstituir a sentença e determinar o retorno dos autos à origem para regular prosseguimento do feito.
3. HONORÁRIOS RECURSAIS
Desconstituída a sentença e ausente fixação na origem, deixo de majorar os honorários.
4. DISPOSITIVO
Por tais razões, voto por conhecer do recurso e dar-lhe provimento.

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Apelação Nº 5015278-13.2021.8.24.0054/SC

RELATOR: Juiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA

APELANTE: LEOPOLDO HANG (AUTOR) APELANTE: SINEIDE SCHUTZ HANG (AUTOR) APELADO: AGINILDA NEUHAUS SCHUTZ (RÉU) APELADO: CELSO SCHUTZ (RÉU)

EMENTA

USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. INDEFERIMENTO DA INICIAL E EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO NA ORIGEM [CPC, ART. 485, I, C/C ART. 300, III]. RECURSO DOS AUTORES. SUSCITADO CERCEAMENTO DE PROVA. DECRETO EXTINTIVO ASSENTE NA AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR, ANTE A MERA DETENÇÃO DA PARTE APELANTE, SEM ÂNIMO DE DONO. INÍCIO DA POSSE EM DECORRÊNCIA DE CONTRATO DE PARCERIA AGRÍCOLA CELEBRADO COM OS GENITORES DA APELANTE. ALEGAÇÃO DE POSSE AD USUCAPIONEM FINDO O CONTRATO, PELO LAPSO TEMPORAL SUPERIOR A 5 ANOS. TENDÊNCIA DE CONTINUIDADE DO CARÁTER DA POSSE TAL COMO FOI ORIGINALMENTE ADQUIRIDA. PRESUNÇÃO, CONTUDO, QUE ADMITE PROVA EM CONTRÁRIO QUANTO À TRANSMUDAÇÃO DA NATUREZA DA POSSE [CC, ART. 1.203]. DIREITO NEGADO PELA PREMATURA EXTINÇÃO DO FEITO. CERCEAMENTO DE PROVA CONFIGURADO. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. RECURSO PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 8ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

+ Usucapião: qual documento é considerado “justo título”

Florianópolis, 19 de dezembro de 2023.

Documento eletrônico assinado por ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, Juiz de Direito de Segundo Grau, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4243026v11 e do código CRC 5cdb0a43.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): ALEXANDRE MORAIS DA ROSAData e Hora: 19/12/2023, às 18:29:24

+ Aquisição da posse: modo originário e derivado

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 19/12/2023

Apelação Nº 5015278-13.2021.8.24.0054/SC

RELATOR: Juiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA

PRESIDENTE: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

PROCURADOR(A): NEWTON HENRIQUE TRENNEPOHL
APELANTE: LEOPOLDO HANG (AUTOR) ADVOGADO(A): MARCELO LEHMKUHL MACHADO (OAB SC007290) ADVOGADO(A): GABRIELLA REGINA VIEIRA (OAB SC031738) APELANTE: SINEIDE SCHUTZ HANG (AUTOR) ADVOGADO(A): MARCELO LEHMKUHL MACHADO (OAB SC007290) ADVOGADO(A): GABRIELLA REGINA VIEIRA (OAB SC031738) APELADO: AGINILDA NEUHAUS SCHUTZ (RÉU) ADVOGADO(A): RAFAEL BRUDA (OAB SC058598) ADVOGADO(A): ANTONIO SALESIO COSTA (OAB SC060576) APELADO: CELSO SCHUTZ (RÉU) ADVOGADO(A): RAFAEL BRUDA (OAB SC058598) ADVOGADO(A): ANTONIO SALESIO COSTA (OAB SC060576)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 19/12/2023, na sequência 402, disponibilizada no DJe de 04/12/2023.
Certifico que a 8ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 8ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Juiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
Votante: Juiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSAVotante: Desembargador ALEX HELENO SANTOREVotante: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART
MARCIA CRISTINA ULSENHEIMERSecretária

Fonte: TJSC

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Imagem Freepik

Por Emerson Souza Gomes

Advogado, sócio do escritório Gomes Advogados Associados, www.gomesadvogadosassociados.com.br.

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