A usucapião é uma figura jurídica complexa e fascinante que permite a aquisição da propriedade mediante a posse contínua, pacífica e sem interrupção por um período determinado. Este processo é muitas vezes utilizado como uma forma de regularização de imóveis em situações onde a formalização da propriedade não foi adequadamente realizada. Um desses cenários envolve o contrato verbal de compra e venda, um tema que merece atenção detalhada.
A Base do Caso: Posse Ininterrupta e Contrato Verbal
No caso específico, as partes apelantes afirmam estar na posse mansa, pacífica e ininterrupta de um imóvel por mais de 13 anos, desde março de 2007. O imóvel em questão, com área de 470,33m², localiza-se no Loteamento Matias Olinger, bairro São Pedro, na cidade e comarca de Porto União, e está registrado sob a matrícula n. 3.720. As apelantes sustentam que adquiriram o imóvel diretamente dos legítimos proprietários, Jovino Antonio Pontes e sua esposa Ilma de Moraes Ribeiro Pontes, por meio de um contrato verbal.
Indeferimento da Petição Inicial: Um Obstáculo Procedimental
A sentença indeferiu a petição e julgou o processo extinto, sem resolução de mérito. A decisão fundamentou-se na inadequação da ação de usucapião como meio para a regularização registral decorrente de um contrato de compra e venda verbal. A sentença coloca em evidência a controvérsia sobre a possibilidade de se usar a usucapião para regularizar a propriedade adquirida de forma derivada.
A Complexidade da Usucapião em Contratos Verbais
As apelantes argumentam que, independentemente da alegada não formalização do negócio jurídico, a pretensão tem origem em uma relação jurídica direta com os proprietários registrais do bem. Esse ponto é crucial, pois ressalta a possibilidade de reconhecimento da posse e, consequentemente, da propriedade, mesmo na ausência de formalização escrita do contrato. Contudo, a ação de usucapião não pode ser utilizada indiscriminadamente para solucionar problemas de regularização registral decorrentes da escolha de vias contratuais menos formais.
Julgados Recentes e a Possibilidade de Exceção
A jurisprudência recente, como citado no caso do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, mostra que há uma abertura para a utilização da usucapião em casos de aquisição derivada, sob condições específicas. Essas condições incluem a demonstração da impossibilidade ou da dificuldade excessiva de registro da propriedade. No caso em análise, porém, não foi comprovada tal dificuldade, enfraquecendo a argumentação pela usucapião baseada em contrato verbal.
Considerações Finais: Usucapião Não é Um Atalho
O caso destaca uma questão fundamental no direito imobiliário: a usucapião não deve ser vista como um atalho para evitar obrigações legais e fiscais inerentes à transmissão de propriedades. O reconhecimento da usucapião sob a alegação de um contrato verbal de compra e venda, sem os devidos elementos probatórios da impossibilidade de formalização e registro, poderia representar uma burla ao sistema jurídico e fiscal. Portanto, é essencial que as partes busquem regularizar a situação de seus imóveis dentro dos parâmetros legais estabelecidos, recorrendo à usucapião apenas quando as condições específicas e legalmente previstas para tal estiverem presentes.
Processo: 5000107-22.2021.8.24.0052 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Alexandre Morais da Rosa
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Oitava Câmara de Direito Civil
Julgado em: 19/12/2023
Classe: Apelação
APELANTE: CLEUSA ESPINOSSA TEIXEIRA PAZ (AUTOR) APELANTE: DORLI DE JESUS DE OLIVEIRA (AUTOR) APELADO: ILMA DE MORAES RIBEIRO PONTES (RÉU) APELADO: JOVINO ANTONIO PONTES (RÉU)
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RELATÓRIO
Trata-se de recurso de apelação em que figuram como apelantes CLEUSA ESPINOSSA TEIXEIRA PAZ e DORLI DE JESUS DE OLIVEIRA, interposto contra sentença proferida pelo juízo de origem nos autos n. 50001072220218240052.
Em atenção aos princípios da celeridade e economia processual [CR, art. 5º, inciso LXXVIII], adoto o relatório da sentença como parte integrante deste acórdão, por refletir com fidelidade o trâmite processual na origem:
Trata-se de ação de usucapião ajuizada por DORLI DE JESUS DE OLIVEIRA e CLEUSA ESPINOSSA TEIXEIRA PAZ cujo objetivo e a usucapião do bem descrito na matrícula imobiliária nº 3.720 em nome de Ilma de Moraes Ribeiro Pontes e Jovino Antonio Pontes.
Alegam na peça inicial, em síntese, que estão na posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel há mais de 13 (treze) anos, visto que residem no local desde 30 de março de 2007, cujo imóvel possui área com 470,33m², situado à Rua João Maria Olinger, nº 283, no Loteamento Matias Olinger, no bairro São Pedro, nesta cidade e comarca de Porto União, e que está registrado sob a matrícula n. 3.720.
Afirmam que adquiriram o referido imóvel em março de 2007 dos legítimos proprietários e possuidores, JOVINO ANTONIO PONTES e sua esposa ILMA DE MORAES RIBEIRO PONTES, mediante contrato verbal entre as partes.
+ Qual o tempo de posse necessário para a usucapião de um imóvel
Ao final, postulam a gratuidade e, no mérito, a procedência dos pedidos, para declarar o domínio do imóvel usucapiendo.
Vieram os autos conclusos.
Sentença [ev. 12]: indeferiu a petição inicial e julgou extinto o processo, sem resolução de mérito [CPC, arts. 330, III, 485, I e VI].
Razões recursais [ev. 16]: requer a parte apelante a cassação da sentença, com o retorno dos autos à origem para regular prosseguimento.
Dispensada a intimação para contrarrazões, porque a parte apelada não foi citada nos autos.
É o relatório.
VOTO
Trata-se de recurso de apelação interposto por CLEUSA ESPINOSSA TEIXEIRA PAZ e DORLI DE JESUS DE OLIVEIRA contra sentença que julgou extinta, sem resolução de mérito, a ação de usucapião ajuizada pelas apelantes.
1. ADMISSIBILIDADE
Preenchidos os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
As apelantes, anote-se, são beneficiárias da justiça gratuita [ev. 12].
2. MÉRITO
A usucapião é forma originária de aquisição da propriedade, pela qual a pessoa que exerce a posse prolongada adquire o domínio do bem, diversamente à transmissão por meio de um negócio jurídico [aquisição derivada].
No caso, as apelantes sustentam exercerem a posse do imóvel desde 2007, em razão de contrato de compra e venda verbal celebrado com Jovino Antonio Pontes e Ilma de Moraes Ribeiro Pontes, que figuram como proprietários registrais da área, matriculada junto ao Registro de Imóveis de Porto União/SC [ev. 1.13].
Independentemente da alegada não formalização do negócio jurídico, a pretensão tem origem em relação jurídica direta com os proprietários registrais do bem, porque intermediada por procurador com poderes para realizar a venda em favor destes.
Assim, a controvérsia deve ser objeto de demanda própria visando a efetivação do contrato. A ação de usucapião não pode servir de atalho à obrigação de regularização registral, com a consequente modificação da natureza por meio da qual a propriedade foi adquirida.
Não se ignora que julgados recentes autorizam excepcionalmente a propositura da ação de usucapião para os casos de aquisição derivada, desde que demonstrada a impossibilidade ou excessiva dificuldade de registro da propriedade [nesse sentido, cita-se: TJSC, Apelação n. 5001268-76.2022.8.24.0070. Relator: Des. Eduardo Gallo Jr. Sexta Câmara de Direito Civil. Julgada em 10.10.2023].
Na espécie, contudo, não foi comprovada dificuldade na obtenção do registro de propriedade que justifique o excepcional manejo desta ação. O fato de o contrato ser verbal não justifica a excepcionalidade quando ausentes elementos fático-probatórios que apontem a impossibilidade de formalização do contrato verbal, tampouco de transmissão da propriedade. Embora as apelantes mencionem uma tentativa frustrada de concretização do contrato, não há provas do alegado.
Pelo que se conclui, as apelantes nem sequer empreenderam esforços para a regularização do bem, optando diretamente pela via que entendiam mais célere e, certamente, menos custosa.
O reconhecimento da usucapião no caso, portanto, caracterizaria burla ao recolhimento de tributos de transmissão.
Em caso recente e similar, assim decidiu esta Câmara:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, POR AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. RECURSO DOS AUTORES. GRATUIDADE DA JUSTIÇA. INDEFERIMENTO DA BENESSE NA ORIGEM. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DESTA CORTE NO SENTIDO DE SEREM ADOTADOS, POR ANALOGIA, PARA O ENQUADRAMENTO NA INSUFICIÊNCIA FINANCEIRA PREVISTA NO ART. 98 DO CPC/2015, OS REQUISITOS CONSTANTES DO ART. 2º DA RESOLUÇÃO N. 15/2014 DO CONSELHO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA DEMONSTRADA NO CASO CONCRETO. DECISUM REFORMADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO PONTO. ALEGAÇÃO DE QUE OS REQUISITOS PARA AQUISIÇÃO DO IMÓVEL POR USUCAPIÃO FORAM PREENCHIDOS. INSUBSISTÊNCIA. AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. CONTRATO VERBAL. AQUISIÇÃO DIRETAMENTE DOS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO REGULAR DA PROPRIEDADE. MANEJO DA AÇÃO DE USUCAPIÃO QUE, NESSE CENÁRIO, REPRESENTA BURLA AO SISTEMA REGISTRAL E AO PAGAMENTO DOS TRIBUTOS DEVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO NO PONTO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. ÔNUS SUCUMBENCIAIS MANTIDOS CONFORME A ORIGEM. HONORÁRIOS RECURSAIS INCABÍVEIS. [TJSC. Apelação n. 5032054-32.2021.8.24.0008. Relator: Des. Joao Marcos Buch. Oitava Câmara de Direito Civil. Julgada em: 05.09.2023].
E de outras Câmaras, extraio os seguintes julgados:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. CONTRATO DE COMPRA E VENDA VERBAL FIRMADO COM O PROPRIETÁRIO REGISTRAL. AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE EVIDENCIADA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. “(…) Demonstrada a aquisição do imóvel por derivação e não de forma originária, ou seja, que a alienação do bem se deu por meio de compra e venda, a ação de usucapião mostra-se inviável para o reconhecimento do direito de propriedade” (TJSC, Apelação Cível n. 0001509-55.2013.8.24.0037, de Joaçaba, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 26-07-2018). RECURSO NÃO PROVIDO. [TJSC. Apelação n. 0300338-37.2016.8.24.0052. Relator: Des. Álvaro Luiz Pereira de Andrade. Sétima Câmara de Direito Civil. Julgada em: 24.03.2022].
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE INDEFERIMENTO DA INICIAL ANTE A AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. INSURGÊNCIA DOS AUTORES. PRETENDIDO O PROSSEGUIMENTO DO FEITO PARA OBTENÇÃO DA DECLARAÇÃO DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL EM DECORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. IMPOSSIBILIDADE. AQUISIÇÃO DERIVADA DO IMÓVEL. AUSÊNCIA, OUTROSSIM, DE ELEMENTOS A INDICAR A EXISTÊNCIA DE ÓBICE INTRANSPONÍVEL À OBTENÇÃO DA PROPRIEDADE NA VIA ADMINISTRATIVA. SENTENÇA MANTIDA. HONORÁRIOS RECURSAIS INDEVIDOS. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. [TJSC. Apelação n. 0307860-82.2018.8.24.0008. Relatora: Desa. Rosane Portella Wolff. Segunda Câmara de Direito Civil. Julgada em 06.10.2022].
Logo, mantém-se a sentença que julgou extinto o processo sem resolução do mérito.
3. HONORÁRIOS RECURSAIS
Deixo de majorar os honorários, porque não houve fixação na origem.
4. DISPOSITIVO
Por tais razões, voto por conhecer do recurso e negar-lhe provimento.
+ Qual a diferença entre posse e detenção?
EMENTA
USUCAPIÃO. INDEFERIMENTO DA INICIAL, COM EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO [CPC, ARTS. 330, III, E 485, I E VI]. RECURSO DAS AUTORAS. INSISTÊNCIA NA NECESSIDADE DO PROVIMENTO JURISDICIONAL. INSUBSISTÊNCIA. CONTRATO VERBAL DE COMPRA E VENDA CELEBRADO COM OS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS. TRANSMISSÃO NÃO FORMALIZADA. IRRELEVÂNCIA. CASO DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. NÃO COMPROVAÇÃO DE SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DE IMPOSSIBILIDADE OU EXCESSIVA DIFICULDADE À REGULARIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DE ÓBICE À TRANSMISSÃO ORDINÁRIA. TENTATIVA DE BURLA AO SISTEMA REGISTRAL E AO PAGAMENTO DOS TRIBUTOS DEVIDOS. INVIABILIDADE DE REGULARIZAÇÃO POR MEIO DE AÇÃO DE USUCAPIÃO. NECESSÁRIO AJUIZAMENTO DA DEMANDA ADEQUADA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. A usucapião é forma originária de aquisição da propriedade, pela qual a pessoa que exerce a posse prolongada adquire o domínio do bem, diversamente à transmissão por meio de negócio jurídico [aquisição derivada].
2. Quando a pretensão tem origem em relação jurídica direta com o proprietário registral do bem, a ação de usucapião não é meio idôneo, sob pena de configurar atalho à regularização registral, com a consequente modificação da natureza por meio da qual a propriedade foi adquirida.
3. Não se ignora o entendimento de excepcional cabimento da usucapião nos casos de aquisição derivada quando impossível ou excessivamente difícil o registro da propriedade. Cabe à parte interessada, contudo, a prova de tal dificuldade.
4. Sem prova de excepcionalidade, mostra-se correta a extinção do feito sem resolução do mérito pela inadequação da via eleita.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 8ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e negar-lhe provimento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
+ Usucapião: alteração do caráter originário da posse
Fonte: TJSC
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