Usucapião e hipoteca

Usucapião e hipoteca. Não há a possibilidade de aquisição derivada em sede de usucapião, de modo que é impreterível a inexistência de relação jurídica direta entre o proprietário registral do imóvel e o possuidor que busca o usucapir. 

+ Usucapião ou adjudicação compulsória?

Processo: 5001262-44.2021.8.24.0025 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Alex Heleno Santore
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Oitava Câmara de Direito Civil
Julgado em: 12/12/2023
Classe: Apelação

Apelação Nº 5001262-44.2021.8.24.0025/SC

RELATOR: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

APELANTE: CARLOS ZABEL (AUTOR) APELANTE: MARIA APARECIDA SCOTTINI ZABEL (AUTOR) APELADO: SOLI INDUSTRIA E COMERCIO LTDA (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação em que figura como parte apelante CARLOS ZABEL e MARIA APARECIDA SCOTTINI ZABEL e como parte apelada SOLI INDUSTRIA E COMERCIO LTDA, interposto contra sentença proferida pelo juízo de origem nos autos n. 50012624420218240025.
Em atenção aos princípios da celeridade e economia processual (CF, art. 5º, inc. LXXVIII), adoto o relatório da sentença como parte integrante deste acórdão, por refletir com fidelidade o trâmite processual na origem:
Vistos, etc.
Trata-se de Ação de Usucapião promovida por MARIA APARECIDA SCOTTINI ZABEL e CARLOS ZABEL objetivando a declaração do domínio dos autores sobre o bem imóvel indicado na peça proemial.
Aduziram que adquiriram o imóvel em questão, medindo 322,97 m², de SOLI INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA, em 1995, sendo que desde então estão na sua posse mansa, pacífica e ininterrupta, sem qualquer oposição e com animus domini.

+ Qual o tempo de posse necessário para a usucapião de um imóvel

Sustentaram que tal propriedade está registrada sob a matrícula n. 210, do Ofício de Registro de Imóveis de Gaspar/SC.
Intimados para esclarecerem acerca do interesse de agir, limitaram-se (evento 9) a informar que “não conseguem efetivar a transferência da propriedade, pois sobre a mesma foi gravado INDEVIDAMENTE hipoteca celular, conforme se extrai da certidão de inteiro teor juntada aos autos (Evento1-MATRIMÓVEL13), tendo como credor o BANCO DO BRASIL S/A, e devedor SOLY INDUSTRIA E COMÉRCIO LTDA”. 
Acrescentaram que “na data do registro da hipoteca (30 de novembro de 1995), a posse do imóvel já pertencia a parte Autora, uma vez que o havia adquirido anteriormente da parte Requerida (Soly Indústria e Comércio Ltda.)”.
Vieram-me os autos conclusos. 
É o breve relatório.
Sentença (ev. 67.1): julgado extinto o processo sem resolução de mérito, conforme dispositivo a seguir transcrito:
Ante o exposto, JULGO EXTINTO o presente processo, sem resolução de mérito, com base no art. 485, VI, do Código de Processo Civil. 
Condeno a parte autora ao pagamento das custas processuais, estando suspensa a exigibilidade pelo prazo de 5 anos, eis que conta com a justiça gratuita (evento 17).
Sem honorários advocatícios. 
P.R.I. 
Oportunamente, arquivem-se os autos.

+ É possível usucapião de automóvel ou de outro bem móvel?

Razões recursais (ev. 71.1): requer a parte apelante a reforma da sentença e o retorno dos autos à origem para instrução.
Parecer ministerial (ev. 11.1): a Procuradoria-Geral de Justiça opina pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
É o relatório.

VOTO

1. ADMISSIBILIDADE
Preenchidos os pressupostos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, conheço do recurso.
2. MÉRITO
O apelo não merece ser provido.
2.1. Da usucapião e legislação aplicável 
A usucapião é forma de aquisição originária de coisa imóvel pelo exercício qualificado da posse (art. 485, CC/1916 e art. 1.196, CC/2002) por aquele que exercer, de fato, com ânimo de dono, algum dos poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor (art. 524, CC/1916 e art. 1.228, CC/2002). 

+ Usucapião: requisitos e documentos necessários

A figura do possuidor é assim descrita por Gagliano e Pamplona Filho: “Mesmo que o sujeito não seja o proprietário, mas se comporte como tal – por exemplo, plantando, construindo, morando -, poderá ser considerado possuidor” (GAGLIANO, Pablo S.; FILHO, Rodolfo Mario Veiga P. Novo Curso de Direito Civil – Direitos Reais – Vol. 5. 2022. E-book. ISBN 9786553622272). 
Todavia, nem todo possuidor poderá adquirir o imóvel de que detém a posse por meio da usucapião. A primeira delimitação para o seu cabimento, é o modo de aquisição de propriedade a que se pretende, a qual deve ser originária.  
Isso significa não haver a possibilidade de aquisição derivada em sede de usucapião, de modo que é impreterível a inexistência de relação jurídica direta entre o proprietário registral do imóvel e o possuidor que busca o usucapir. 
É nesse ponto que a celeuma da demanda em debate se insere. 
2.2. Da aquisição originária/derivada da propriedade 
Embora o Código Civil não diferencie especificamente quais são as formas originárias e/ou derivadas de aquisição da propriedade, a doutrina define como originária a aquisição decorrente de um fato jurídico stricto sensu. Como exemplo, menciona-se o exercício de posse contínua pelo decurso do tempo, a aquisição vinculada a fenômenos da natureza. A aquisição derivada está vinculada à existência prévia de um negócio jurídico (GAGLIANO, Pablo S.; FILHO, Rodolfo Mario Veiga P. Novo Curso de Direito Civil – Direitos Reais – Vol. 5. Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622272). 

+ O que é posse de boa-fé?

A partir dessa definição, a usucapião se trata de forma de aquisição originária da propriedade, eis que surge a partir do decurso do tempo. Em contrapartida, quando o alienante e o adquirente firmam um contrato, em tese, o imóvel será adquirido de forma derivada, dada a existência de um negócio jurídico entre eles. 
Nessa senda, sobre a aquisição derivada e as ações de usucapião, leciona Sílvio de Salvo Venosa:  
Dizemos que a aquisição da propriedade é originária quando desvinculada de qualquer relação com o titular anterior. Nela não existe relação jurídica de transmissão. Inexiste, ou não há relevância jurídica na figura do antecessor. Sustenta-se ser apenas a ocupação verdadeiramente modo originário de aquisição. Todavia, sem dúvida como a maioria da doutrina, entendam-se como originárias também as aquisições por usucapião e acessão natural. Nessas três modalidades, não existe relação jurídica do adquirente com o proprietário precedente. Caso típico de aquisição originária é o usucapião. O bem usucapido pode ter pertencido a outrem, mas o usucapiente dele não recebe a coisa. Seu direito de aquisição não decorre do antigo proprietário. Na aquisição originária, o único elemento que para ele concorre é o próprio fato ou ato jurídico que lhe dá nascimento (Direito Civil – Direitos Reais. V. 5, São Paulo: Ed. Atlas, p. 175-176). 
No caso concreto, o terreno usucapiendo está situado na Rua Lauro Schneider, n. 30, Bairro Santa Terezinha, na cidade de Gaspar/SC e está registrado perante o Ofício de Registro de Imóveis daquela comarca sob o número de Mat. 210, em nome de Soli Indústria e Comércio LTDA (ev. 1.13), de quem a parte adquiriu o imóvel, conforme relato da inicial.

+ O que é posse justa?

Torna-se irrelevante, portanto, o exercício ou não da posse capaz de ensejar a usucapião, pois constatada a aquisição derivada da propriedade. Sobre o assunto, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
[…] 4. A declaração de usucapião é forma de aquisição originária da propriedade ou de outros direitos reais, modo que se opõe à aquisição derivada, a qual se opera mediante a sucessão da propriedade, seja de forma singular, seja de forma universal. Vale dizer que, na usucapião, a propriedade não é adquirida do anterior proprietário, mas, em boa verdade, contra ele. A propriedade é absolutamente nova e não nasce da antiga. É adquirida a partir da objetiva situação de fato consubstanciada na posse ad usucapionem pelo interregno temporal exigido por lei. Aliás, é até mesmo desimportante que existisse antigo proprietário. […] (REsp n. 941.464/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/4/2012, DJe de 29/6/2012.)
E este Tribunal de Justiça: 
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA EM RAZÃO DA CONFIGURAÇÃO DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. RECURSO DOS AUTORES.  ALEGAÇÃO DE QUE O IMÓVEL FOI ADQUIRIDO DE FORMA ORIGINÁRIA E QUE OS REQUISITOS PARA AQUISIÇÃO DO BEM POR USUCAPIÃO FORAM PREENCHIDOS. INSUBSISTÊNCIA. AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. DOAÇÃO VERBAL FEITA PELO GENITOR DO AUTOR, QUE CONSTA COMO PROPRIETÁRIO REGISTRAL NA MATRÍCULA. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO REGULAR DA PROPRIEDADE. FATO DE O IMÓVEL NÃO INTEGRAR O SISTEMA VIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO E SUPOSTAMENTE ESTAR LOCALIZADO EM  ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE QUE NÃO IMPEDIU O REGISTRO DA PROPRIEDADE EM FAVOR DO PROPRIETÁRIO ANTERIOR. MANEJO DA AÇÃO DE USUCAPIÃO QUE, NESSE CENÁRIO, REPRESENTA BURLA AO SISTEMA REGISTRAL E AO PAGAMENTO DOS TRIBUTOS DEVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. ÔNUS SUCUMBENCIAIS MANTIDOS CONFORME A ORIGEM. HONORÁRIOS RECURSAIS INCABÍVEIS.  RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.  (TJSC, Apelação n. 0302038-14.2016.8.24.0031, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Joao Marcos Buch, Oitava Câmara de Direito Civil, j. 07-11-2023).
Reconhecer a viabilidade do manejo da ação de usucapião, no presente caso, caracterizaria burla ao recolhimento dos tributos de transmissão.

+ Qual a diferença entre posse e detenção?

Destaca-se que é “entendimento dominante das Câmaras de Direito Civil desta Corte que a ação de usucapião é via inadequada para regularizar transmissão da propriedade adquirida por derivação do proprietário anterior, tal como por contrato de compra e venda, doação ou mesmo causa mortis, mormente porque acarretaria burla ao recolhimento de tributos de transmissão (ITBI, ITCMD e causa mortis) e eventualmente ao procedimento de prévio desmembramento do imóvel”  (TJSC, Apelação n. 0001733-74.2009.8.24.0023, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Monteiro Rocha, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 19-05-2022).  
Referido entendimento tem sido relativizado na hipótese de “se revelar difícil ou impossível dar seguimento à obtenção do registro da propriedade por eventuais dificuldades apresentadas no caso concreto (TJSC, Apelação n. 5002990-31.2022.8.24.0011, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 25-07-2023)”.
A hipótese sob análise, entretanto, é distinta da situação dos precedentes indicados, não havendo qualquer prova da impossibilidade ou dificuldade de regularização da propriedade do imóvel pelas formas cabíveis.
Havendo hipoteca gravada sobre o imóvel, a via adequada para liberação da garantia é a ação de extinção/desconstituição do gravame. Aliado a isso, dispõe o Código Civil: “Art. 1.475. É nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado.”
Dessa forma, configurada a aquisição derivada da propriedade, porquanto há relação direta da demandante com o proprietário registral do imóvel, a ação de usucapião é via inadequada,  mesmo que, em tese, tenha havido o preenchimento dos requisitos previstos no art. 1.238 do CC, não merecendo reparo a sentença. 
3. DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto por negar provimento ao recurso.

Documento eletrônico assinado por ALEX HELENO SANTORE, Desembargador Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4206984v6 e do código CRC 75940b5f.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): ALEX HELENO SANTOREData e Hora: 13/12/2023, às 12:12:16

+ O que é posse justa?

Apelação Nº 5001262-44.2021.8.24.0025/SC

RELATOR: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

APELANTE: CARLOS ZABEL (AUTOR) APELANTE: MARIA APARECIDA SCOTTINI ZABEL (AUTOR) APELADO: SOLI INDUSTRIA E COMERCIO LTDA (RÉU)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. PROCESSO EXTINTO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. RECURSO DOS AUTORES.  ALEGAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DO REGISTRO EM RAZÃO DA HIPOTECA GRAVADA NO IMÓVEL. INSUBSISTÊNCIA. AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. CONTRATO VERBAL CELEBRADO COM O PROPRIETÁRIO REGISTRAL. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO REGULAR DA PROPRIEDADE. HIPOTECA QUE DEVE SER DESCONSTITUÍDA PELOS MEIOS PRÓPRIOS. MANEJO DA AÇÃO DE USUCAPIÃO QUE, NESSE CENÁRIO, REPRESENTA BURLA AO PAGAMENTO DOS TRIBUTOS DEVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 

ACÓRDÃO

+ Qual a diferença entre posse e detenção?

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 8ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 12 de dezembro de 2023.

Documento eletrônico assinado por ALEX HELENO SANTORE, Desembargador Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4206985v5 e do código CRC 6c7341fc.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): ALEX HELENO SANTOREData e Hora: 13/12/2023, às 12:12:16

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 12/12/2023

+ Quem mora de favor pode pedir usucapião?

Apelação Nº 5001262-44.2021.8.24.0025/SC

RELATOR: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

PRESIDENTE: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

PROCURADOR(A): MURILO CASEMIRO MATTOS
APELANTE: CARLOS ZABEL (AUTOR) ADVOGADO(A): rodnei thome (OAB SC024968) ADVOGADO(A): Anderson Schramm (OAB SC024829) APELANTE: MARIA APARECIDA SCOTTINI ZABEL (AUTOR) ADVOGADO(A): rodnei thome (OAB SC024968) ADVOGADO(A): Anderson Schramm (OAB SC024829) APELADO: SOLI INDUSTRIA E COMERCIO LTDA (RÉU) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 12/12/2023, na sequência 67, disponibilizada no DJe de 22/11/2023.
Certifico que a 8ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 8ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

+ Usucapião: qual documento é considerado “justo título”

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador ALEX HELENO SANTORE
Votante: Desembargador ALEX HELENO SANTOREVotante: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULARTVotante: Juiz JOAO MARCOS BUCH
MARCIA CRISTINA ULSENHEIMERSecretária

Fonte: TJSC

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Imagem Freepik

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