Usucapião: aquisição derivada

Usucapião: aquisição derivada. No caso dos autos, o imóvel em discussão, embora transmitido à autora por meio de doação de seus genitores, nunca foi objeto de constituição regular por instrumento público que viabilizasse a tradição no fólio imobiliário.

Processo: 0309745-05.2016.8.24.0008 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Haidée Denise Grin
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Sétima Câmara de Direito Civil
Julgado em: 01/02/2024
Classe: Apelação

Apelação Nº 0309745-05.2016.8.24.0008/SC

RELATORA: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN

APELANTE: LUCIANA PADARATZ MARQUES DE ALENCASTRO (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELADO: IRACEMA PADARATZ (RÉU) APELADO: JULIANO DENIS PADARATZ (RÉU) APELADO: KATIA REGINA DE NOVAES PADARATZ (RÉU)

RELATÓRIO

Luciana Padaratz Marques de Alencastro ajuizou esta ação de Usucapião em face de Iracema Padaratz, Juliano Denis Padaratz e Kátia Regina de Novaes Padaratz alegando que adquiriu por doação o imóvel situado na Rua dos Pescadores, 631, bairro Velha Central, Blumenau/SC, com área de 422,06m², registrado sob a matrícula n. 7.362 do 2° Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau. Alegou que desde 2004 exerce posse com ânimo de dona, razão por que pleiteou o reconhecimento da prescrição aquisitiva (Evento 1, PET1, na origem).
O Juízo de origem deferiu a justiça gratuita e determinou a citação (Evento 2, na origem).
Com o cumprimento parcial das diligências de cientificação e angularização processual, sobreveio sentença proferida pelo MM Juiz Bernardo Augusto Ern que indeferiu a petição inicial e extinguiu o feito sem resolver o mérito nos termos do art. 485 do CPC. A autora foi ainda condenada a pagar as custas processuais, com a ressalva da suspensão da exigibilidade em razão da gratuidade deferida (Evento 74, na origem).
Insatisfeita, a autora interpôs o presente recurso de apelação (Evento 81, na origem).
Nas suas razões recursais, defendeu que recebeu o imóvel objeto da lide a partir de doação efetuada ainda no ano de 2004. Alegou que a recorrente conta com pelo menos 18 anos de posse mansa, pacífica, incontestada e ininterrupta. Sustentou que a doação, embora efetivada, não foi seguida de registro do título de transferência. Arguiu ainda que a jurisprudência desta Corte de Justiça mais recentemente admitiu pedidos como este formulado pela apelante e que o irmão da recorrente obteve provimento de procedência em feito idêntico a este. Pugnou pelo conhecimento e provimento do recurso.
O Magistrado sentenciante proferiu decisão mantendo a sentença (evento 84, na origem).
Os autos foram encaminhados a este Tribunal de Justiça.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Antenor Chinato Ribeiro (Evento 16), manifestando-se pela inexistência de interesse público a tutelar.
Vieram conclusos.

VOTO

Inicialmente, registra-se que esta Relatora não desconhece a existência de outros feitos mais antigos em seu acervo, de modo que a apreciação deste recurso em detrimento daqueles distribuídos há mais tempo não significa violação ao disposto no artigo 12, caput, do Código de Processo Civil, mas configura estratégia de gestão para enfrentamento em bloco das lides que versam sobre temáticas similares, tendo em vista o grande volume de ações neste grau recursal.
Preenchidos os requisitos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, o recurso merece ser conhecido.
In casu, retira-se do caderno processual que a apelante propuseram a presente ação de usucapião afirmando que em 2004 recebeu em doação o imóvel descrito na peça inaugural e que ocupa o imóvel deste então sempre com o ânimo de dona.
Por esta razão, aduziu que estão presentes os requisitos para o reconhecimento jurisdicional da usucapião extraordinária, na forma do art. 1.238 do Código Civil.
É cediço que o manejo da ação de usucapião é modo de aquisição originária da propriedade através do exercício prolongado da posse e de outros requisitos legais.   
Sobre o assunto, colhe-se da doutrina de Antonio Carlos Marcato:   
É modo originário de aquisição de domínio particular, pois inexiste vinculação entre o atual e o antigo proprietário do bem usucapido, vale dizer, ‘não há qualquer relação jurídica de causalidade entre o domínio atual e o estado jurídico anterior’, diversamente do que ocorre nos modos derivados de aquisição, em que existe essa relação de causalidade entre o domínio do adquirente e do alienante, representado por um fato jurídico” (MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos Especiais. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 165).   
Sendo assim, para o sucesso da ação de usucapião, importa verificar o modo em que se deu a aquisição do bem e, nesse ponto, reside a controvérsia da presente demanda.   
Isso porque, após analisar o caderno processual o Magistrado a quo entregou antecipadamente a prestação jurisdicional, concluindo que “a origem da posse da parte autora decorre da aquisição derivada da propriedade, pois adquiriu o bem dos proprietários anteriores por meio de negócio jurídico. Em outras palavras, houve uma compra e venda direta entre a demandante e os proprietários registrais, logo inexiste uma cadeia possessória que pudesse, por exemplo, dissolver a aquisição derivada do domínio. Nesse passo, verifica-se a inadequação da via eleita, mormente, a desnecessidade da utilização da ação usucapião, porquanto, possível no caso a efetiva transcrição do imóvel para os autores junto ao Registro de Imóveis, já que sequer restou demonstrada eventual oposição do proprietário em transferir a coisa” (Evento 74, da origem).
Ocorre que, data vênia o entendimento firmado pelo Togado singular de que a posse alegada decorre de aquisição derivada de propriedade, o que inviabiliza o manejo da presente ação de usucapião que, como dito, é modo originário de aquisição, melhor analisando os autos, verifica-se que não é essa a situação dos autos.
Isso porque, sabe-se que a aquisição da propriedade pode se dar de forma originária, ou seja, quando inexiste vínculo com o proprietário anterior, ou derivada, quando há uma relação jurídica com o antecessor. Nessa segunda hipótese, ocorre a transmissão da propriedade de um sujeito a outro e inviabiliza o sucesso da ação de usucapião.   
A declaração de domínio por intermédio da presente demanda tem espaço nas situações em que não há vínculo entre a propriedade atual e a anterior, pressupondo da inexistência de uma transação ou alienação da coisa pelo antigo proprietário em favor do requerente do direito.
Sobre a temática, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald lecionam que:   
O fundamento da usucapião é a consolidação da propriedade. O proprietário desidioso, que não cuida de seu patrimônio, deve ser privado da coisa, em favor daquele que, unindo posse e tempo, deseja consolidar e pacificar sua situação perante o bem e a sociedade. Os modos de aquisição da propriedade podem ser originários ou derivados. Originários são assim considerados não pelo fato de a titularidade surgir pela primeira vez com o proprietário. Em verdade, fundam-se na existência, ou não, de relação contratual entre o adquirente e o antigo dono da coisa. Na aquisição originária, o novo proprietário não mantém qualquer relação de direito real ou obrigacional com seu antecessor, pois não obtém o bem do antigo proprietário, mas contra ele. (Curso de direito civil: direito reais – 13. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2017, pág. 394)   
No caso dos autos, o imóvel em discussão, embora transmitido à autora por meio de doação de seus genitores, nunca foi objeto de constituição regular por instrumento público que viabilizasse a tradição no fólio imobiliário.
Ademais, conforme anotado nestes autos no curso de sua instrução, observa-se que a genitora da demandante é falecida, o que inviabilizaria a lavratura da necessária escritura pública de doação do imóvel.
Diante das circunstâncias, a presente ação de usucapião se afigura instrumento processual hábil para viabilizar a pretensão inicial, qual seja: a declaração de domínio da área descrita na inicial, estando evidente o interesse de agir.  
Assim, o reconhecimento da existência do interesse processual é medida imperativa e, como consequência, a sentença atacada merece ser desconstituída e os autos devem retornar à origem para seu regular processamento e julgamento.
Oportuno mencionar que com a sentença proferida antecipadamente na origem, ou seja, sem instrução probatória acerca do preenchimento dos requisitos da modalidade extraordinária aventada pela autora, o feito não se encontra apto para julgamento do mérito, o que impede a aplicação do art. 1.013, §3º, do Código de Processo Civil. 
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provimento para determinar o retorno dos autos ao juízo originário para o seu regular processamento.

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Apelação Nº 0309745-05.2016.8.24.0008/SC

RELATORA: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN

APELANTE: LUCIANA PADARATZ MARQUES DE ALENCASTRO (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELADO: IRACEMA PADARATZ (RÉU) APELADO: JULIANO DENIS PADARATZ (RÉU) APELADO: KATIA REGINA DE NOVAES PADARATZ (RÉU)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO E PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA QUE INDEFERIU A PETIÇÃO INICIAL E EXTINGUIU A LIDE SEM RESOLVER O MÉRITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL.
RECURSO DA AUTORA. DEFENDIDO INTERESSE PROCESSUAL. SUBSISTÊNCIA. IMÓVEL USUCAPIENDO  REGISTRADO JUNTO AO REGISTRO IMOBILIÁRIO. DOCUMENTOS ACOSTADOS AO FEITO QUE EVIDENCIAM NÃO TER SIDO DIRETA (DERIVADA) A AQUISIÇÃO DA POSSE PELA PARTE AUTORA. DOAÇÃO FEITA PELOS GENITORES. FALECIMENTO DESTES. INVIABILIDADE DE CONCRETIZAÇÃO DO NEGÓCIO COM A LAVRATURA DA NECESSÁRIA ESCRITURA PÚBLICA. PRETENSÃO USUCAPIENDA QUE SE AFIGURA INSTRUMENTO HÁBIL. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA QUE SE FAZ NECESSÁRIA A FIM DE VERIFICAR O PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 1.238 DO CC. SENTENÇA CASSADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA O REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO. 
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.  

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 7ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para determinar o retorno dos autos ao juízo originário para o seu regular processamento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 01 de fevereiro de 2024.

Documento eletrônico assinado por HAIDÉE DENISE GRIN, Desembargadora, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4356554v5 e do código CRC 42e2393c.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): HAIDÉE DENISE GRINData e Hora: 1/2/2024, às 18:42:8

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 01/02/2024

Apelação Nº 0309745-05.2016.8.24.0008/SC

RELATORA: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN

PRESIDENTE: Desembargador ÁLVARO LUIZ PEREIRA DE ANDRADE

PROCURADOR(A): NEWTON HENRIQUE TRENNEPOHL
APELANTE: LUCIANA PADARATZ MARQUES DE ALENCASTRO (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELADO: IRACEMA PADARATZ (RÉU) APELADO: JULIANO DENIS PADARATZ (RÉU) APELADO: KATIA REGINA DE NOVAES PADARATZ (RÉU) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 01/02/2024, na sequência 168, disponibilizada no DJe de 22/01/2024.
Certifico que a 7ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 7ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO PARA DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS AO JUÍZO ORIGINÁRIO PARA O SEU REGULAR PROCESSAMENTO.

RELATORA DO ACÓRDÃO: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN
Votante: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRINVotante: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVAVotante: Desembargador OSMAR NUNES JÚNIOR
TIAGO PINHEIROSecretário

Fonte: TJSC

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