Usucapião: inexistência de transação direta

Usucapião: inexistência de transação direta: A declaração de domínio por intermédio da usucapião tem espaço nas situações em que não há vínculo entre a propriedade atual e a anterior, pressupondo da inexistência de uma transação ou alienação da coisa pelo antigo proprietário em favor do requerente do direito.

Processo: 0312811-27.2015.8.24.0008 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Haidée Denise Grin
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Sétima Câmara de Direito Civil
Julgado em: 01/02/2024
Classe: Apelação

Apelação Nº 0312811-27.2015.8.24.0008/SC

RELATORA: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN

APELANTE: NILTO CESAR CARDOSO (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELANTE: MADALENA DA SILVA (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELADO: ANA LUIZA EMPREENDIMENTOS IMOBILIARIOS LTDA (RÉU)

RELATÓRIO

Nilto Cesar Cardoso e Madalena da Silva ajuizaram esta ação de Usucapião em face de Ana Luiza Empreendimentos Imobiliários alegando que adquiriram o imóvel situado na Rua Oswaldo Meuche, 462, bairro Salto Norte, Blumenau/SC, com área de 703,13m², registrado sob a matrícula de n. 18.494, junto ao 3° Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau. Alegaram que desde 2001 exercem posse com ânimo de donos, razão por que pleitearam o reconhecimento da prescrição aquisitiva (Evento 1, PET1, na origem).
O Juízo de origem deferiu a justiça gratuita e determinou a citação (Evento 19, na origem).
Com o cumprimento parcial das diligências de cientificação e angularização processual, sobreveio sentença proferida pelo MM Juiz Bernardo Augusto Ern que extinguiu o feito sem resolver o mérito nos termos do art. 485 do CPC. Os autores foi ainda condenado a pagar as custas processuais, com a ressalva da suspensão da exigibilidade em razão da gratuidade deferida (Evento 90, na origem).
Insatisfeitos, os autores interpuseram o presente recurso de apelação (Evento 96, na origem).
Nas suas razões recursais, defenderam que adquiriram o imóvel no ano de 2001 da possuidora Crista Fey, a qual, por sua vez, o adquiriu em 1996 da proprietária registral Ana Luiza Empreendimentos Imobiliários Ltda.. Alegaram que perfazem pelo menos 21 anos de posse exclusiva, mansa, pacífica, incontestada e ininterrupta. Sustentaram ainda que “a situação de fato existente NÃO PERMITE A SIMPLES TRANSFERÊNCIA DO IMÓVEL JUNTO AO REGISTRO DE IMÓVEIS, conforme consignado pelo Juízo, vez que NÃO EXISTE UMA ESCRITURA PÚBLICA DE TRANSFERÊNCIA DO IMÓVEL assinada entre as partes. Assim, mediante as peculiaridades do caso, o ÚNICO caminho para se regularizar o imóvel é através da presente demanda.” Pugnaram pelo conhecimento e provimento do recurso.
A ré, devidamente citada, não apresentou contrarrazões (Evento 105, na origem).
Os autos foram encaminhados a este Tribunal de Justiça.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Américo Bigaton (Evento 11), manifestando-se pelo conhecimento e provimento do apelo.
Vieram conclusos.

VOTO

Inicialmente, registra-se que esta Relatora não desconhece a existência de outros feitos mais antigos em seu acervo, de modo que a apreciação deste recurso em detrimento daqueles distribuídos há mais tempo não significa violação ao disposto no artigo 12, caput, do Código de Processo Civil, mas configura estratégia de gestão para enfrentamento em bloco das lides que versam sobre temáticas similares, tendo em vista o grande volume de ações neste grau recursal.
Preenchidos os requisitos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, o recurso merece ser conhecido.
In casu, retira-se do caderno processual que os apelantes propuseram a presente ação de usucapião afirmando que em 2021 adquiriram o imóvel descrito na peça inaugural por meio de termo particular de cessão de direitos possessórios, recebendo a tradição da posse do ocupante anterior, sempre com o ânimo de dono.
Por esta razão, aduziram que estão presentes os requisitos para o reconhecimento jurisdicional da usucapião extraordinária, na forma do art. 1.238 do Código Civil.
É cediço que o manejo da ação de usucapião é modo de aquisição originária da propriedade através do exercício prolongado da posse e de outros requisitos legais.   
Sobre o assunto, colhe-se da doutrina de Antonio Carlos Marcato:  
É modo originário de aquisição de domínio particular, pois inexiste vinculação entre o atual e o antigo proprietário do bem usucapido, vale dizer, ‘não há qualquer relação jurídica de causalidade entre o domínio atual e o estado jurídico anterior’, diversamente do que ocorre nos modos derivados de aquisição, em que existe essa relação de causalidade entre o domínio do adquirente e do alienante, representado por um fato jurídico” (MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos Especiais. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 165).   
Sendo assim, para o sucesso da ação de usucapião, importa verificar o modo em que se deu a aquisição do bem e, nesse ponto, reside a controvérsia da presente demanda.   
Isso porque, após analisar o caderno processual o Magistrado a quo entregou antecipadamente a prestação jurisdicional, concluindo que “a origem da posse da parte autora decorre da aquisição derivada da propriedade, pois adquiriu o bem dos proprietários anteriores por meio de negócio jurídico. Em outras palavras, houve uma compra e venda direta entre a demandante e os proprietários registrais, logo inexiste uma cadeia possessória que pudesse, por exemplo, dissolver a aquisição derivada do domínio” (Evento 90, da origem).
Ocorre que, data vênia do entendimento firmado pelo Togado singular de que a posse alegada decorre de aquisição derivada de propriedade, o que inviabiliza o manejo da presente ação de usucapião que, como dito, é modo originário de aquisição, melhor analisando os autos, verifica-se que não é essa a situação dos autos.
Isso porque, sabe-se que a aquisição da propriedade pode se dar de forma originária, ou seja, quando inexiste vínculo com o proprietário anterior, ou derivada, quando há uma relação jurídica com o antecessor. Nessa segunda hipótese, ocorre a transmissão da propriedade de um sujeito a outro e inviabiliza o sucesso da ação de usucapião.   
A declaração de domínio por intermédio da presente demanda tem espaço nas situações em que não há vínculo entre a propriedade atual e a anterior, pressupondo da inexistência de uma transação ou alienação da coisa pelo antigo proprietário em favor do requerente do direito.
Sobre a temática, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald lecionam que:   
O fundamento da usucapião é a consolidação da propriedade. O proprietário desidioso, que não cuida de seu patrimônio, deve ser privado da coisa, em favor daquele que, unindo posse e tempo, deseja consolidar e pacificar sua situação perante o bem e a sociedade. Os modos de aquisição da propriedade podem ser originários ou derivados. Originários são assim considerados não pelo fato de a titularidade surgir pela primeira vez com o proprietário. Em verdade, fundam-se na existência, ou não, de relação contratual entre o adquirente e o antigo dono da coisa. Na aquisição originária, o novo proprietário não mantém qualquer relação de direito real ou obrigacional com seu antecessor, pois não obtém o bem do antigo proprietário, mas contra ele. (Curso de direito civil: direito reais – 13. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2017, pág. 394)   
No caso dos autos, a área em discussão não foi adquirida pelos autores diretamente do proprietário registral mas, sim, de Crista Fey, a qual, por sua vez, o adquiriu em 1996 da proprietária registral Ana Luiza Empreendimentos Imobiliários Ltda.
Diante das circunstâncias – ausência de vínculo contratual direto entre a parte autora e o proprietário registral -, a presente ação de usucapião se afigura instrumento processual hábil para viabilizar a pretensão inicial, qual seja: a declaração de domínio da área descrita na inicial, estando evidente o interesse de agir.  
Assim, o reconhecimento da existência do interesse processual é medida imperativa e, como consequência, a sentença atacada merece ser desconstituída e os autos devem retornar à origem para seu regular processamento e julgamento.
Oportuno mencionar que com a sentença proferida antecipadamente na origem, ou seja, sem instrução probatória acerca do preenchimento dos requisitos da modalidade extraordinária aventada pelos autores, o feito não se encontra apto para julgamento do mérito, o que impede a aplicação do art. 1.013, §3º, do Código de Processo Civil.
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provimento para determinar o retorno dos autos ao juízo originário para o seu regular processamento. 

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Apelação Nº 0312811-27.2015.8.24.0008/SC

RELATORA: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN

APELANTE: NILTO CESAR CARDOSO (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELANTE: MADALENA DA SILVA (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELADO: ANA LUIZA EMPREENDIMENTOS IMOBILIARIOS LTDA (RÉU)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO E PROCESSUAL CIVIL. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL (ARTS. 330, III, E 485, VI, DO CPC).
RECURSO DOS AUTORES. 
DEFENDIDO INTERESSE PROCESSUAL, PORQUANTO INEXISTE NA HIPÓTESE AQUISIÇÃO DERIVADA DE DOMÍNIO. SUBSISTÊNCIA. IMÓVEL USUCAPIENDO  REGISTRADO JUNTO AO REGISTRO IMOBILIÁRIO. DOCUMENTOS ACOSTADOS AO FEITO QUE EVIDENCIAM NÃO TER SIDO DIRETA (DERIVADA) A AQUISIÇÃO DA POSSE PELA PARTE AUTORA. PRETENSÃO USUCAPIENDA QUE SE AFIGURA INSTRUMENTO HÁBIL. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA QUE SE FAZ NECESSÁRIA A FIM DE VERIFICAR O PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 1.238 DO CC. SENTENÇA CASSADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA O REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.  

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 7ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para determinar o retorno dos autos ao juízo originário para o seu regular processamento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 01 de fevereiro de 2024.

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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 01/02/2024

Apelação Nº 0312811-27.2015.8.24.0008/SC

RELATORA: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN

PRESIDENTE: Desembargador ÁLVARO LUIZ PEREIRA DE ANDRADE

PROCURADOR(A): NEWTON HENRIQUE TRENNEPOHL
APELANTE: NILTO CESAR CARDOSO (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELANTE: MADALENA DA SILVA (AUTOR) ADVOGADO(A): CEZAR AUGUSTO CAMPESATTO DOS SANTOS (OAB SC027033) APELADO: ANA LUIZA EMPREENDIMENTOS IMOBILIARIOS LTDA (RÉU) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 01/02/2024, na sequência 167, disponibilizada no DJe de 22/01/2024.
Certifico que a 7ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 7ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO PARA DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS AO JUÍZO ORIGINÁRIO PARA O SEU REGULAR PROCESSAMENTO.

RELATORA DO ACÓRDÃO: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRIN
Votante: Desembargadora HAIDÉE DENISE GRINVotante: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVAVotante: Desembargador OSMAR NUNES JÚNIOR
TIAGO PINHEIROSecretário

Fonte: TJSC

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