Para tudo há um limite e com direitos não se dá de forma diversa. Veja quando ocorre o abuso do direito e quais as consequências. De acordo com o Código Civil o abuso do direito é um ato ilícito.
Como posso estar praticando um ato ilícito se estou exercendo um direito
“O direito de um termina onde o direito do outro começa”. No dito popular é relativamente fácil compreender o abuso do direito. Na prática, trata-se de um terreno sinuoso, já que o abuso do direito envolve comumente um conflito de interesses onde, em aparência, ambas as partes estão respaldadas em dispositivos legais, ou seja, em direitos previstos em lei.
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Não existe direito absoluto
Se por um lado para identificar o abuso do exercício de um direito é necessário divisar os limites do exercício deste direito, antes disso – antes de dizer quem está com a razão – é importante ter em mente que não existem direitos absolutos. Até mesmo o direito à vida não é intangível – tome-se como exemplo o estado de necessidade, onde dois náufragos precisam disputar uma única tábua de salvação.
Existe uma hierarquia entre leis, onde a Constituição assume o papel de Lei Maior. Mas no campo dos direitos em si, não existe qualquer subordinação; existem valores que são encerrados em normas jurídicas hipotéticas cuja aplicação adequada depende de um caso concreto.
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Todo mal deve ser justo
Quando se exige o respeito a um direito, sobretudo perante o Poder Judiciário, não se pode afastar a ideia de que se admite provocar um mal-justo a outra parte. Serve como exemplo um pedido de reparação de danos. Quando o ofendido busca a recomposição do seu patrimônio, o efeito disso é o empobrecimento do ofensor, visto que o mesmo terá que desembolsar uma quantia do seu patrimônio para pagamento da indenização – nada mais justo, por sinal.
O exercício dos direitos deve se dar de forma regular. A partir do momento em que alguém exerce um direito tendo por objetivo muito mais provocar um prejuízo a um terceiro – a um vizinho, por exemplo – do que um bem-estar pessoal, está-se perante um indício bastante forte de abuso do direito e, por conseguinte, da prática de um ato ilícito travestido de ato jurídico. Todo mal deve ser justo e isto porque o direito não visa o mal: visa o bem…
…o “bem comum”.
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Não é necessário dolo ou culpa
A questão é bastante controvertida entre os doutrinadores jurídicos, mas a corrente doutrinária majoritária aponta que não é necessário, para a configuração do abuso do exercício de um direito, que haja a intenção de provocar um dano a outrem.
É bastante aferir-se, no caso concreto, se houve ou não regularidade do exercício; se a ação ou omissão de quem exerce o direito habita um limite que, em tese, está em conformidade com o que prevê a lei e, frise-se, toda lei visa regular uma conduta na sociedade; daí, o exercício de um direito, para ser regular, não pode ser “anti-social”.
É dispensável uma lei afirmando que determinada conduta é abusiva
Traçar um limite para o exercício de um direito é um desafio hercúleo. Este desafio reside bastante no fato de que é praticamente impossível descrever todas as hipóteses em que um direito é exercido de forma abusiva. – Imagine a quantidade de leis que seria necessária!
O reconhecimento de um ato abusivo não depende de expressa previsão legal, embora existam leis, como o Código de Defesa do Consumidor, que traçam exemplos expressos de práticas abusivas.
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Quando ocorre o abuso do direito e quais as consequências
De acordo com o Código Civil, comete ato ilícito aquele que, ao exercer um direito, excede os limites do seu fim econômico, social, ou que contrariar a boa-fé ou os bons costumes:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Código Civil
Não se admite o exercício de um direito de forma imoderada. O Código Civil, a par de adotar a noção de que, quem abusa do direito, comete um ato ilícito, traça os limites para o exercício regular de qualquer direito, principalmente, de direitos individuais; são eles:
a) Fim econômico;
b) Fim social;
c) Boa-fé;
d) Bons costumes.
Anote-se que a lei não traça expressamente aquilo que se deve entender por fim econômico, fim social, boa-fé e bons costumes. Tratam-se de cláusulas gerais que, por uma série de critérios, como o prudente arbítrio do juiz, a razoabilidade ou a proporcionalidade, são deduzidas no caso concreto, delimitando o que deve ser entendido como regular exercício de um direito.
A utilidade é um ponto que deve ser observado. No momento em que alguém exerce um direito, busca um resultado útil, como no exemplo de colocar cercas em um terreno. A partir do momento em que não se visualiza qualquer utilidade no exercício do direito e, pior, quando surgem indícios de que se busca provocar um prejuízo a outrem, o abuso do direito margeia a ilicitude e, por conseguinte, pode vir a ser coibido.
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Quanto às consequências do exercício abusivo de um direito, seguem a regra geral, isto é, caracterizado o ato ilícito o Código Civil afirma o direito à reparação de danos:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Código Civil
Reparar perdas e danos (e até mesmo a perda de uma chance) é uma consequência da prática de um ato ilícito. Mas, aprioristicamente, no abuso do direito, o recurso a liminares, buscando evitar um maior prejuízo, é um caminho que mais e mais é empregado.
Presente elementos como o fumus boni iuris (a fumaça do bom direito) e o periculum in mora (o perigo na demora) sem que seja necessário até mesmo a ouvir a parte adversa, em sendo somente hipotético que alguém esteja exercendo de forma abusiva um direito e que, portando, há um certo grau de plausibidade na pretensão, obrigações de fazer ou de não-fazer, como determinar que seja interrompida a construção de determinada melhoria, são deferidas, evitando-se, assim, um maior prejuízo ao ofendido.
A respeito de abuso do direito e liminares, vou tratar deste tema em outras postagens. Por ora, quero registrar que a coerência no exercício de direitos, não só evita discórdias e eventuais conflitos judicias, mas, da mesma forma, faz com que se evite que se criem mais leis com uma maior intervenção do Estado no domínio privado, vez que, quando os particulares não se entendem, o poder de polícia intervém impondo limites àquilo que o bom senso e a razão devem limitar.
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Doutrina: Abuso do direito
“Juridicamente, abuso de direito pode ser entendido como fato de usar de um poder, de uma faculdade, de um direito ou mesmo de uma coisa, além do razoavelmente o Direito e a Sociedade permitem. O titular de prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nesta situação, o ato é contrário ao direito e ocasiona responsabilidade” (VENOSA, 2003, p. 603 e 604).