Usucapião: pagamento de tributos

Usucapião: pagamento de tributos. Reconhecer a viabilidade do manejo da ação de usucapião, no presente caso, caracterizaria burla ao recolhimento dos tributos de transmissão e parcelamento do imóvel.

Processo: 0300342-33.2015.8.24.0077 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Alex Heleno Santore
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Oitava Câmara de Direito Civil
Julgado em: 19/12/2023
Classe: Apelação

Apelação Nº 0300342-33.2015.8.24.0077/SC

RELATOR: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

APELANTE: VALENTIM MUNIZ (AUTOR) APELANTE: IRENE TERESINHA MUNIZ (AUTOR) APELADO: ALURINO COELHO VIEIRA (RÉU) APELADO: SELMA LUCIA VIEIRA (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação interposto por VALENTIM MUNIZ e IRENE TERESINHA MUNIZ contra sentença proferida pelo juízo de origem nos autos n. 03003423320158240077.
Em atenção aos princípios da celeridade e economia processual (CF, art. 5º, inc. LXXVIII), adoto o relatório da sentença como parte integrante deste acórdão, por refletir com fidelidade o trâmite processual na origem:
Trata-se de ação de usucapião ajuizada por VALENTIM MUNIZ e IRENE TERESINHA MUNIZ em face de ALURINO COELHO VIEIRA e SELMA LUCIA VIEIRA, todos qualificados aos autos.
Aduziram, em suma, que (ev. 1, doc. 1, p. 1-2):
“No dia 5 de setembro de 1995, os Autores adquiriram, através de contrato de compra e venda, a posse de um terreno situado na localidade de Alto da Serra, denominada ‘Fazenda Morro Agudo’, área rural do Município de Rio Rufino/SC, com área 500.000,00 m² (quinhentos mil metros quadrados), registrado no Ofício da Comarca de Urubici sob o número 2.847.
Ressalta-se que, maiores informações acerca das medidas e confrontações do imóvel supracitado podem ser extraídas do Memorial Descritivo elaborado pelo profissional Cleves Oneres Pesso de Liz – CREA/SC nº 075587-3, que segue anexo.
Assim, considerando que os Autores possuem justo título, boa fé e animus domini sobre o referido imóvel, resta evidente que a posse exercida pelos Autores é mansa, pacífica e continua, tendo o prazo fixado em lei transcorrido, uma vez que já se passaram 19 (dezenove) anos.
Diante disto, deve ser declarada a propriedade do bem aos Autores, com a consequente averbação no Registro de Imóveis.”
Foi determinada a intimação da parte autora para “manifestar-se quanto à ausência de interesse processual, porquanto, da narrativa da inicial verifica-se que a causa envolve aquisição por meio de contrato particular de compromisso de compra e venda” (ev. 145), atendida ao ev. 149.
Após, os autos vieram conclusos.
Sentença (ev. 152.1): julgado extinto o processo sem resolução de mérito, conforme dispositivo a seguir transcrito:
Ante o exposto, com fulcro no art. 485, VI, do CPC, julgo extinta sem análise de mérito a presente ação proposta por VALENTIM MUNIZ e IRENE TERESINHA MUNIZ em face de ALURINO COELHO VIEIRA e SELMA LUCIA VIEIRA, todos qualificados na presente ação.
Condeno a parte autora ao pagamento das custas processuais, suspensa a exigibilidade ante a gratuidade da justiça concedida (ev. 12).
Sem condenação em honorários advocatícios, pois ausente defesa técnica.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Transitada em julgado, arquivem-se com as cautelas de estilo.
Razões recursais (ev. 156.1): requer a parte apelante a reforma da sentença e a procedência dos pedidos iniciais.
Parecer ministerial: decorrido o prazo sem manifestação (ev. 12).
É o relatório.

VOTO

1. ADMISSIBILIDADE
Preenchidos os pressupostos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, conheço do recurso.
2. MÉRITO
O apelo não merece ser provido.
2.1. Da usucapião e legislação aplicável 
A usucapião é forma de aquisição originária de coisa imóvel pelo exercício qualificado da posse (art. 485, CC/1916 e art. 1.196, CC/2002) por aquele que exercer, de fato, com ânimo de dono, algum dos poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor (art. 524, CC/1916 e art. 1.228, CC/2002). 
A figura do possuidor é assim descrita por Gagliano e Pamplona Filho: “Mesmo que o sujeito não seja o proprietário, mas se comporte como tal – por exemplo, plantando, construindo, morando -, poderá ser considerado possuidor” (GAGLIANO, Pablo S.; FILHO, Rodolfo Mario Veiga P. Novo Curso de Direito Civil – Direitos Reais – Vol. 5. 2022. E-book. ISBN 9786553622272). 
Todavia, nem todo possuidor poderá adquirir o imóvel de que detém a posse por meio da usucapião. A primeira delimitação para o seu cabimento, é o modo de aquisição de propriedade a que se pretende, a qual deve ser originária.  
Isso significa não haver a possibilidade de aquisição derivada em sede de usucapião, de modo que é impreterível a inexistência de relação jurídica direta entre o proprietário registral do imóvel e o possuidor que busca o usucapir. 
É nesse ponto que a celeuma da demanda em debate se insere. 
2.2. Da aquisição originária/derivada da propriedade 
Embora o Código Civil não diferencie especificamente quais são as formas originárias e/ou derivadas de aquisição da propriedade, a doutrina define como originária a aquisição decorrente de um fato jurídico stricto sensu. Como exemplo, menciona-se o exercício de posse contínua pelo decurso do tempo, a aquisição vinculada a fenômenos da natureza. A aquisição derivada está vinculada à existência prévia de um negócio jurídico (GAGLIANO, Pablo S.; FILHO, Rodolfo Mario Veiga P. Novo Curso de Direito Civil – Direitos Reais – Vol. 5. Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622272). 
A partir dessa definição, a usucapião se trata de forma de aquisição originária da propriedade, eis que surge a partir do decurso do tempo. Em contrapartida, quando o alienante e o adquirente firmam um contrato, em tese, o imóvel será adquirido de forma derivada, dada a existência de um negócio jurídico entre eles. 
Nessa senda, sobre a aquisição derivada e as ações de usucapião, leciona Sílvio de Salvo Venosa:  
Dizemos que a aquisição da propriedade é originária quando desvinculada de qualquer relação com o titular anterior. Nela não existe relação jurídica de transmissão. Inexiste, ou não há relevância jurídica na figura do antecessor. Sustenta-se ser apenas a ocupação verdadeiramente modo originário de aquisição. Todavia, sem dúvida como a maioria da doutrina, entendam-se como originárias também as aquisições por usucapião e acessão natural. Nessas três modalidades, não existe relação jurídica do adquirente com o proprietário precedente. Caso típico de aquisição originária é o usucapião. O bem usucapido pode ter pertencido a outrem, mas o usucapiente dele não recebe a coisa. Seu direito de aquisição não decorre do antigo proprietário. Na aquisição originária, o único elemento que para ele concorre é o próprio fato ou ato jurídico que lhe dá nascimento (Direito Civil – Direitos Reais. V. 5, São Paulo: Ed. Atlas, p. 175-176). 
No caso concreto, o imóvel usucapiendo está situado na localidade de Alto da Serra, denominada “Fazenda Morro Agudo”, município de Rio Rufino, e está registrado perante o Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Urubici sob o número de Mat. 2.847, em nome de Alurino Coelho Vieira e Selma Lucia Vieira (ev. 10.34 a 10.38), de quem o demandante adquiriu o bem, conforme contratos de evs. 1.17, e Klabin S. A.
Torna-se irrelevante, portanto, o exercício ou não da posse capaz de ensejar a usucapião, pois constatada a aquisição derivada da propriedade. Sobre o assunto, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
[…] 4. A declaração de usucapião é forma de aquisição originária da propriedade ou de outros direitos reais, modo que se opõe à aquisição derivada, a qual se opera mediante a sucessão da propriedade, seja de forma singular, seja de forma universal. Vale dizer que, na usucapião, a propriedade não é adquirida do anterior proprietário, mas, em boa verdade, contra ele. A propriedade é absolutamente nova e não nasce da antiga. É adquirida a partir da objetiva situação de fato consubstanciada na posse ad usucapionem pelo interregno temporal exigido por lei. Aliás, é até mesmo desimportante que existisse antigo proprietário. […] (REsp n. 941.464/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/4/2012, DJe de 29/6/2012.)
E este Tribunal de Justiça: 
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, POR AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. RECURSO DOS AUTORES. INSISTÊNCIA NA UTILIDADE/NECESSIDADE DO PROVIMENTO JURISDICIONAL. INSUBSISTÊNCIA. AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. FRAÇÃO DE TERRAS INSERIDA EM ÁREA MAIOR DEVIDAMENTE REGISTRADA. ÁREA ADQUIRIDA DIRETAMENTE DOS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS DA GLEBA MAIOR. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE IMPOSSIBILIDADE DE DESMEMBRAMENTO DO IMÓVEL E POSTERIOR TRANSMISSÃO REGULAR DA PROPRIEDADE COM BASE NO TÍTULO OSTENTADO PELOS DEMANDANTES. MANEJO DA AÇÃO DE USUCAPIÃO QUE, NESSE CENÁRIO, REPRESENTA BURLA AO SISTEMA REGISTRAL E AO PAGAMENTO DOS TRIBUTOS DEVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0312143-56.2015.8.24.0008, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Saul Steil, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 25-07-2023).
Reconhecer a viabilidade do manejo da ação de usucapião, no presente caso, caracterizaria burla ao recolhimento dos tributos de transmissão e parcelamento do imóvel.
Destaca-se que é “entendimento dominante das Câmaras de Direito Civil desta Corte que a ação de usucapião é via inadequada para regularizar transmissão da propriedade adquirida por derivação do proprietário anterior, tal como por contrato de compra e venda, doação ou mesmo causa mortis, mormente porque acarretaria burla ao recolhimento de tributos de transmissão (ITBI, ITCMD e causa mortis) e eventualmente ao procedimento de prévio desmembramento do imóvel”  (TJSC, Apelação n. 0001733-74.2009.8.24.0023, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Monteiro Rocha, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 19-05-2022).  
Referido entendimento tem sido relativizado na hipótese de “se revelar difícil ou impossível dar seguimento à obtenção do registro da propriedade por eventuais dificuldades apresentadas no caso concreto (TJSC, Apelação n. 5002990-31.2022.8.24.0011, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 25-07-2023)”.
Este caso, entretanto, é distinto da situação dos precedentes indicados, não havendo qualquer prova da impossibilidade ou dificuldade de regularização da propriedade do imóvel pelas formas cabíveis.
Segundo os apelantes, a regularização da propriedade do imóvel foi obstada pela falta de área no registro. Em outras palavras, houve a aquisição de 500.000,00m² enquanto remanesce disponível na matrícula para comercialização apenas 97.600,00m².
Embora não seja possível o registro do negócio de imediato é incabível a regularização da situação por meio da ação de usucapião, especialmente por se tratar de aquisição derivada da propriedade.
Não estando disponível a área adquirida, os compradores devem buscar obrigar os vendedores a cumprir o contrato ou exigir deles o que é de direito pela via adequada. 
Ainda, havendo concordância de Klabin S. A. (ev. 38.60) proprietário da maior parte do terreno em que o imóvel usucapiendo está inserido, há grandes indícios de que parte da área deste pertence a outra matrícula.
Dessa forma, configurada a aquisição derivada da propriedade, a ação de usucapião é via inadequada,  mesmo que, em tese, tenha havido o preenchimento dos requisitos previstos no art. 1.238 do CC, não merecendo reparo a sentença. 
3. DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto por negar provimento ao recurso.

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Apelação Nº 0300342-33.2015.8.24.0077/SC

RELATOR: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

APELANTE: VALENTIM MUNIZ (AUTOR) APELANTE: IRENE TERESINHA MUNIZ (AUTOR) APELADO: ALURINO COELHO VIEIRA (RÉU) APELADO: SELMA LUCIA VIEIRA (RÉU)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. PROCESSO EXTINTO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. RECURSO DOS AUTORES.  ALEGAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DO REGISTRO EM RAZÃO DA INDISPONIBILIDADE DE TODA A ÁREA ADQUIRIDA, REMANESCENDO NA MATRÍCULA ÁREA INFERIOR ÀQUELA COMERCIALIZADA. SITUAÇÃO QUE DEVE SER REIVINDICADA PELAS VIAS PRÓPRIAS. AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. CONTRATO CELEBRADO COM OS PROCURADORES DOS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO REGULAR DA PROPRIEDADE PELAS VIAS CABÍVEIS. AÇÃO DE USUCAPIÃO QUE, NESSE CENÁRIO, REPRESENTA BURLA AO PAGAMENTO DOS TRIBUTOS DEVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 8ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 19 de dezembro de 2023.

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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 19/12/2023

Apelação Nº 0300342-33.2015.8.24.0077/SC

RELATOR: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

PRESIDENTE: Desembargador ALEX HELENO SANTORE

PROCURADOR(A): NEWTON HENRIQUE TRENNEPOHL
APELANTE: VALENTIM MUNIZ (AUTOR) ADVOGADO(A): RAVIANE ERBS BORBA VENTURA (OAB SC039337) APELANTE: IRENE TERESINHA MUNIZ (AUTOR) ADVOGADO(A): RAVIANE ERBS BORBA VENTURA (OAB SC039337) APELADO: ALURINO COELHO VIEIRA (RÉU) APELADO: SELMA LUCIA VIEIRA (RÉU) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (INTERESSADO)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 19/12/2023, na sequência 111, disponibilizada no DJe de 04/12/2023.
Certifico que a 8ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 8ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador ALEX HELENO SANTORE
Votante: Desembargador ALEX HELENO SANTOREVotante: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULARTVotante: Juiz JOAO MARCOS BUCH
MARCIA CRISTINA ULSENHEIMERSecretária

Fonte: TJSC

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