Usucapião de veículo

AÇÃO DE USUCAPIÃO DE VEÍCULO

Processo: 5000854-78.2019.8.24.0104 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Marcos Fey Probst
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Sexta Câmara de Direito Civil
Julgado em: 16/07/2024
Classe: Apelação

Apelação Nº 5000854-78.2019.8.24.0104/SCPROCESSO ORIGINÁRIO: Nº 5000854-78.2019.8.24.0104/SC

RELATOR: Desembargador MARCOS FEY PROBST

APELANTE: JULYCASA MATERIAIS DE CONSTRUCAO LTDA (AUTOR) ADVOGADO(A): Carlos Alberto Moser (OAB SC016898) APELADO: CIMENTUBO ARTEFATOS DE CIMENTO EIRELI (RÉU)

RELATÓRIO

Por refletir com fidelidade o trâmite na origem, adoto o relatório da sentença (evento 15, SENT1, origem): 
JULYCASA MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO LTDA aforou demanda de Usucapião contra CIMENTUBO ARTEFATOS DE CIMENTO EIRELI, objetivando a declaração de prescrição aquisitiva do veículo Toyota/Hilux CD 4X4 SRV, ano 2009/2010, placas MJJ-0278, sob o fundamento de que comprou do requerido o automóvel em dezembro de 2011, conforme recibo do Evento 1/Anexo 4, contudo, não foi possível registrar a transferência em decorrência da existência de gravame de alienação fiduciária no prontuário do veículo.
Quitadas as parcelas remanescentes do financiamento, argumenta que tentou proceder à transferência, deparando-se com a existência de novas restrições, inseridas pelo sistema RENAJUD, concernentes a pretensões executórias exercidas em desfavor do requerido.
Desta feita, pleiteou a declaração de usucapião do bem objeto da demanda.
Sobreveio o seguinte dispositivo:
Ante o exposto, nos termos do art. 485, VI, do CPC, por não vislumbrar o interesse em agir do autor, EXTINGO O FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO.

Custas pelo autor
Sem honorários, pois a(s) parte(s) ré(s) não foi(ram) citada(s).
A parte autora opôs embargos de declaração (evento 19, EMBDECL1), os quais rejeitados pelo Juízo singular (evento 22, SENT1).
Irresignada, a parte autora então interpôs recurso de apelação (evento 25, APELAÇÃO1, origem).
Em suas razões, sustenta que: (i) sem a efetiva transferência da propriedade do veículo perante o Detran, não pode a apelante usar, fruir ou dispor do bem; (ii) a simples tradição não regulariza a propriedade; (iii) a existência do Certificado de Registro de Veículo (CRV) não basta para a transferência do veículo perante o Detran em razão da pendência de Renajud que impede a transferência e a circulação; (iv) o veículo já lhe pertence há mai de 8 anos; (v) a parte ativa jamais pretendeu desconstituir a penhora realizada em outros processos, tendo buscado o reconhecimento da propriedade do bem através da usucapião, nos termos do art. 1.261 do CPC.
Nestes termos, requer o provimento da espécie, reconhecendo seu direito de agir na presente demanda e determinando ao Juízo singular a continuidade do feito.
Despicienda apresentação de contrarrazões.
A Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se no sentido da ausência de interesse no feito.
É o relatório.

VOTO

1. Inicialmente, deixo de analisar o pedido de tutela recursal formulado pela parte recorrente, porquanto a realização do julgamento da controvérsia através do presente faz afastar a urgência indicada pela parte para acolhimento da sua pretensão. 
Dito isso, presentes os requisitos de admissibilidade, especialmente pelo recolhimento do preparo recursal (evento 28, CUSTAS1, origem), conheço do recurso.
2. No mérito, o recurso deve ser provido.
A parte ativa busca através dos presentes autos a obtenção do registro de propriedade, mediante usucapião extraordinária (art. 1.261 do CC), sobre o veículo Toyota Hilux, ano/modelo 2009/2010, placas MJJ-0278, ao argumento de que tem a posse mansa e pacífica do bem desde maio/2012.
A sentença recorrida, porém, extinguiu o feito sem resolução de mérito, ao fundamento de ausência de adequação da ação de usucapião para atendimento do anseio da parte.
O entendimento lançado pelo Juízo a quo, porém, merece reforma.
De plano, reconheço acerto na sentença ao sinalizar que o caso em tela envolve obtenção da propriedade sobre bem móvel, o qual se transfere mediante simples tradição, nos termos do art. 1.226 do Código Civil (“Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”).
Logo, havendo negociação formal seguida de entrega da coisa pelo alienante, a propriedade sobre a caminhonete Toyota/Hilux já recai sobre a parte ativa, ainda que não registrado o negócio perante o órgão de trânsito.
Ocorre que esta circunstância não impõe óbice à usucapião, a qual pode ser aforada e processada justamente para alteração da propriedade do bem perante o órgão de trânsito, conforme reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. VEÍCULO. VIOLAÇÃO AO ART. 535, I E II DO CPC/73. NÃO OCORRÊNCIA. FALTA DE TRANSFERÊNCIA NO ÓRGÃO ADMINISTRATIVO CORRESPONDENTE. LIMITAÇÃO DO EXERCÍCIO DE PROPRIEDADE PLENA. SUCESSÃO DE PROPRIETÁRIOS. INTERESSE DE AGIR. EXISTÊNCIA. 1. Ação de usucapião extraordinária ajuizada em 20.10.2011. Recurso especial atribuído ao gabinete em 25.08.2016. 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a recorrente possui interesse de agir para propor ação de usucapião extraordinária, com a finalidade de reconhecimento do domínio de veículo e regularização do registro de propriedade junto ao órgão de trânsito correspondente. 3. Inviável o reconhecimento de violação ao art. 535 do CPC quando não verificada no acórdão recorrido omissão, contradição ou obscuridade apontadas pela recorrente. 4. A ação de usucapião extraordinária, fundamentada no art. 1.261 do Código Civil, pressupõe posse da coisa móvel por cinco anos, independentemente de justo título ou boa-fé, e tem por objeto a declaração de aquisição de propriedade. 5. Apesar da regra geral de que o domínio de bens móveis se transfere pela tradição, em se tratando de veículo, a falta de transferência da propriedade no órgão de trânsito correspondente limita o exercício da propriedade plena, uma vez que torna impossível ao proprietário que não consta do registro tomar qualquer ato inerente ao seu direito de propriedade, como o de alienar ou de gravar o bem. 6. Possui interesse de agir para propor ação de usucapião extraordinária aquele que tem a propriedade de veículo registrado em nome de terceiros nos Departamentos Estaduais de Trânsito competentes. 7. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.582.177/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/10/2016, DJe de 9/11/2016.)
Não descuro, em acréscimo, da existência de documentos os quais, em tese, oportunizariam a alteração do registro de propriedade do bem móvel perante o Detran/SC (evento 1, ANEXO28, origem), em especial o Certificado de Registro de Veículo e o DUT assinado por comprador e vendedor (evento 1, ANEXO4, origem).
Porém, vejo que a alteração da titularidade registral do veículo se encontra obstada pela existência de registros de penhora via ferramenta Renajud sobre o automóvel (evento 1, DOC23, evento 1, DOC24, evento 1, DOC26 e evento 1, DOC27), consequência da existência de dívidas sobre o anterior proprietário (evento 1, DOC25, origem). 
No mais, parece não socorrerem a parte apelante os instrumentos jurídicos de proteção ao direito do terceiro, mormente porque, já ajuizados embargos de terceiro pela parte autora, foram esses julgados improcedentes pelo Juízo da Comarca de Ascurra (evento 10, ANEXO2, origem).
Dessa forma, ainda que os autos de usucapião não se sirvam para a solução de entraves jurídicos ou administrativos que impõem complexidade à transferência registral de bens, cuida-se de ferramenta válida quanto não mais persistem alternativas ao possuidor para haver para si os direitos inerentes à propriedade. 
Portanto, tenho que a cassação da sentença, com o retorno dos autos à origem para regular processamento, é medida imperativa. 
3. Cassada a sentença, despicienda a análise sobre a distribuição dos ônus sucumbenciais. Além disso, provido o recurso, inviável a fixação de honorários recursais, consoante entendimento consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:  
Segundo a orientação da Corte Especial do STJ, firmada no julgamento do AgInt nos EAREsp n.º 762.075/MT, relator Ministro FELIX FISCHER, relator p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado aos 19/12/2018, DJe de 7/3/2019, é devida a majoração da verba honorária sucumbencial, na forma do art. 85, § 11, do NCPC, quando estiverem presentes os seguintes requisitos, simultaneamente: a) decisão recorrida publicada a partir de 18/3/2016, quando entrou em vigor o novo Código de Processo Civil; b) recurso não conhecido integralmente ou desprovido, monocraticamente ou pelo órgão colegiado competente; e c) condenação em honorários advocatícios desde a origem no feito em que interposto o recurso. (AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.183.167/MG, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 27/11/2023, DJe de 29/11/2023.)
4. Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao recurso, para cassar a sentença prolatada e determinar o retorno dos autos à origem para regular processamento. Sem fixação de honorários recursais, nos termos da fundamentação.

Documento eletrônico assinado por MARCOS FEY PROBST, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4978273v17 e do código CRC bc68d019.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): MARCOS FEY PROBSTData e Hora: 16/7/2024, às 13:35:24

Apelação Nº 5000854-78.2019.8.24.0104/SCPROCESSO ORIGINÁRIO: Nº 5000854-78.2019.8.24.0104/SC

RELATOR: Desembargador MARCOS FEY PROBST

APELANTE: JULYCASA MATERIAIS DE CONSTRUCAO LTDA (AUTOR) ADVOGADO(A): Carlos Alberto Moser (OAB SC016898) APELADO: CIMENTUBO ARTEFATOS DE CIMENTO EIRELI (RÉU)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO DE BEM MÓVEL. VEÍCULO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. RECURSO DA PARTE ATIVA. 
PRETENDIDA CONTINUIDADE DO FEITO NA ORIGEM. ACOLHIMENTO. PROPRIEDADE DE BEM MÓVEL QUE SE TRANSMITE COM A SIMPLES TRADIÇÃO (ART. 1.226 DO CC). PORÉM, POSSÍVEL UTILIZAÇÃO DA VIA DA USUCAPIÃO PARA BUSCAR ALTERAÇÃO DO REGISTRO PERANTE O ÓRGÃO DE TRÂNSITO. PRECEDENTE DA CORTE SUPERIOR. IMPOSSIBILIDADE DE REGISTRO DE PROPRIEDADE SOBRE O VEÍCULO PELA AUTORA NA VIA ADMINISTRATIVA EM RAZÃO DA PENDÊNCIA DE PENHORA RENAJUD POR DÍVIDAS DO PROPRIETÁRIO ANTERIOR. EMBARGOS DE TERCEIRO AFORADOS PELA PARTE ATIVA QUE JÁ FORAM JULGADOS IMPROCEDENTES. INEXISTÊNCIA DE OUTROS MEIOS PARA PERSEGUIR A PRETENSÃO. EXORDIAL DA USUCAPIÃO QUE DEVE SER ACEITA. SENTENÇA ALTERADA PARA OPORTUNIZAR O PROCESSAMENTO DOS AUTOS NA ORIGEM. 
SEM HONORÁRIOS RECURSAIS.
RECURSO PROVIDO. 

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 6ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso, para cassar a sentença prolatada e determinar o retorno dos autos à origem para regular processamento. Sem fixação de honorários recursais, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 16 de julho de 2024.

Documento eletrônico assinado por MARCOS FEY PROBST, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4978274v6 e do código CRC 6471f065.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): MARCOS FEY PROBSTData e Hora: 16/7/2024, às 13:35:24

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 16/07/2024

Apelação Nº 5000854-78.2019.8.24.0104/SC

RELATOR: Desembargador MARCOS FEY PROBST

PRESIDENTE: Desembargador RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGE

PROCURADOR(A): ONOFRE JOSE CARVALHO AGOSTINI
APELANTE: JULYCASA MATERIAIS DE CONSTRUCAO LTDA (AUTOR) ADVOGADO(A): Carlos Alberto Moser (OAB SC016898) APELADO: CIMENTUBO ARTEFATOS DE CIMENTO EIRELI (RÉU) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 16/07/2024, na sequência 75, disponibilizada no DJe de 01/07/2024.
Certifico que a 6ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 6ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, DAR PROVIMENTO AO RECURSO, PARA CASSAR A SENTENÇA PROLATADA E DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO. SEM FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador MARCOS FEY PROBST
Votante: Desembargador MARCOS FEY PROBSTVotante: Desembargador RENATO LUIZ CARVALHO ROBERGEVotante: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
JULIANA DE ALANO SCHEFFERSecretária

Por Emerson Souza Gomes

Advogado, sócio do escritório Gomes Advogados Associados, www.gomesadvogadosassociados.com.br.

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