Usucapião especial de imóvel urbano
Processo: 0500167-59.2013.8.24.0163 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: André Carvalho
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Civil
Julgado em: 23/07/2024
Classe: Apelação Citações – Art. 927, CPC: Súmulas STJ:1, 4, 284, 7
Súmulas STF:7
Apelação Nº 0500167-59.2013.8.24.0163/SC
RELATOR: Desembargador ANDRÉ CARVALHO
RELATÓRIO
Adoto, por economia processual e em homenagem à sua completude, o relatório da sentença (evento 125 dos autos de origem), da lavra do em. magistrado Antônio Marcos Decker, in verbis:
Trata-se de Ação de Usucapião proposta por xxxxxxxxxxxxxx, na qual pleiteia(m) a declaração de domínio de um imóvel urbano com área total de 221 m², localizado na Rua João Manoel Luiz, s/n, bairro Três de Maio, neste município. Asseverou(aram) o(s) autor(es) que exerce(m) a posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel desde 2008, tendo adquirido o referido bem do(s) antigo(s) possuidor(es). Fundamentou(aram) a actio proposta nos dispositivos legais pertinentes, requereu(ram) a citação dos proprietário(s) registral(ais) e dos confinantes, assim como a intimação dos representantes da Fazenda Pública Federal, Estadual e Municipal e do membro do Ministério Público, além da produção de provas, para, ao final, postular(em) a procedência da ação. Valorou(aram) a causa e instrumentalizou(aram) a inicial com documentos.
Regularmente intimados, os demandantes complementaram a documentação necessária.
O(s) proprietário(s) registral(ais) e o(s) confrontante(s) foi(ram) citado(s).
As partes requeridas xxxxxxxxxxx apresentaram contestação, acerca das quais manifestou-se a parte requerente.
O União foi intimada e não manifestou interesse no objeto do feito.
O Estado foi intimado e não manifestou interesse no objeto do feito.
O Município foi intimado e não manifestou interesse no objeto do feito.
Não houve impugnação pelos interessados citados por edital.
O feito foi saneado, oportunidade em que designada audiência de instrução para colheita de prova oral.
Na audiência de instrução, colheu-se o depoimento de duas testemunhas arroladas pelo(s) requerido(es). As partes apresentaram alegações finais remissivas.
Determinou-se a intimação do requerido xxxxxxxxxxxxxxx para se manifestar acerca de eventual interesse na designação de nova data para audiência de instrução em julgado, sendo, diante de sua inércia, declarado o encerramento da instrução processual.
Informou-se o falecimento da parte ativa e requereu-se a habilitação dos herdeiros.
O Ministério Público, então, manifestou-se pela improcedência do pedido veiculado nesta ação.
Segue a parte dispositiva da decisão:
Ante o exposto, julgo improcedentes o pedido veiculado nesta ação, o que faço com fundamento no art. 487, I, do CPC/2015.
Condeno o(s) autor(es) ao pagamento das despesas processuais e dos honorários advocatícios em favor do advogado da parte autora, estes últimos arbitro em 10% do valor da causa, tendo em conta o grau de zelo do profissional, o lugar de prestação do serviço, a natureza e a importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço (CPC/2015, art.85, §2º). Fica deferida a gratuidade da justiça, ao que suspensa a exigibilidade das verbas.
Defiro a habilitação dos herdeiros Sônia Regina de Souza e Jorge Luiz Antunes, os quais deverão, em 15 (quinze) dias, juntar procuração ao causídico, sob as penalidades da lei. Retifique-se o cadastro de partes.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Interposta possível apelação, intime-se o apelado para, querendo, apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias (CPC/2015, art. 1.010, §1º), observando-se o prazo em dobro para Advocacia Pública (CPC/2015, art. 183), Defensoria Pública (CPC/2015, art. 186) e Ministério Público (CPC/2015, art. 180). Se o apelado interpuser apelação adesiva, intime-se o apelante-recorrido para, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias ou no prazo dobrado se for o caso, apresentar contrarrazões (CPC/2015, art. 1.010, §2º). Após estas formalidades, decorridos os prazos, remetam-se os autos ao Tribunal de Justiça, independentemente de juízo de admissibilidade (CPC/2015, art. 1.010, §3º).
Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.
Irresignados, os sucessores da autora (que faleceu no curso do litígio) interpuseram recurso de apelação (evento 135), sustentando, em compendiado, que: a) há prova do animus domini, mormente em razão do pagamento de conta de IPTU e “do consumo do bem”; b) embora a apelada tenha adquirido o terreno, deixou o Sr. Aléquis residir em uma delas sem qualquer oposição, o qual murou a gleba usucapienda e construiu uma casa de alvenaria; c) “o Sr. Norberto, dividiu o seu terreno e inicialmente vendeu parte para o Sr. Aléquis por contrato de gaveta”, mas se manteve como proprietário registral do imóvel, “até que [Norberto] vendeu para recorrida, esta mesmo ciente da venda da parte a Aléquis, levou a registro” a totalidade do terreno; d) “a própria recorrida Rosinete confessa em sua peça de defesa (…) que todos que moraram no imóvel objeto tinham justo título e ciência e agiam como proprietários”; e) “até a autora entrar com a presente ação, a recorrida, Rosinete , não se opôs a qualquer um dos antigos possuidores do terreno/casa em questão”; f) “Não há nos autos prova de que a Recorrida tenha reivindicado o imóvel, seja entrando com ação de reintegração de posse, efetuando boletim de ocorrência e/ou notificação extrajudicial contra a parte recorrente ou qualquer dos antecessares na posse”; g) a apelada somente viu oportunidade de reclamar o terreno quando a então idosa, que cuidava do filho com esquizofrenia, foi morar no imóvel; h) “não se mostra razoável crer que a Recorrida tenha pago pelo “terreno todo com duas moradas” (o que obviamente pagou somente pela metade e por uma casa), no ano de 2003, a quantia de R$ 6.900 (seis mil e novecentos reais) (INF63, Evento 96) , e por sua vez, Sr. Terezinha (quem negociou com a parte Recorrente), comprou, pela parte menor do terreno, pelo valor de R$29.000,00 (vinte e nove mil reais) no ano de 2007 (INF13, Evento 96)”; i) cada uma das glebas que compõe o terreno possui registro imobiliário próprio no município; j) caso não se entenda pela procedência dos pedidos iniciais, a sentença deve ser cassada porque o juízo singular não se ateve a “nenhuma prova válida para formar seu convencimento e, se não tinha, deveria no mínimo requisitar”; k) não foi possível arrolar testemunhas porque “a demanda foi substabelecida a este Causídico (SUBS91, Evento 96), na época, sem aviso prévio, já em meio à fase de instrução processual, sendo que o mesmo tentou contato com a parte requerente, Filomena já se encontrava adoecida e acamada, acumulando patologias pelo processo patológico de envelhecimento, senilidade, dentre as quais Alzheimer, um transtorno neurodegenerativo progressivo” – contudo, “em todas suas petições, a parte Recorrente pugnou pela possibilidade de provar o alegado, também mediante a inquirição de testemunhas, além do depoimento pessoal da requerida”; l) mesmo tendo pleiteado a produção de prova oral na inicial e na réplica, não foi intimada pessoalmente para a audiência de instrução, assim como também não o foi o réu Carlos Prudêncio; m) caso a sentença seja confirmada, a edificação da residência deve ser indenizada aos recorrentes, porquanto adquiriram o imóvel do Sr. Aléquis quando a casa já havia sido construída por ele no local.
Ao final, pugnaram pelo conhecimento e provimento do recurso, a fim de serem julgados procedentes os pedidos iniciais ou, subsidiariamente, ser cassada a sentença, “a fim de oportunizar a oitiva das testemunhas da Recorrente, assim como do depoimento pessoal das partes [e] oportunizar ao Réu, Carlos Prudêncio, a produzir as provas que entender necessárias”.
Contrarrazões no evento 144.
Ato contínuo, no evento 14 do caderno de segundo grau, os apelantes acostaram novo documento.
Intimados os adversos, a apelada Rosinete Porfirio apresentou manifestação (evento 21).
O Ministério Público, em parecer da lavra da em. Procuradora de Justiça Monika Pabst, opinou pelo parcial conhecimento do recurso e, na extensão conhecida, seu desprovimento (evento 24, SG).
Após isso, vieram-me os autos conclusos.
É o relatório.
VOTO
Admissibilidade
Inicialmente, adianta-se que a declaração acostada pelos apelantes junto do evento 14 dos autos de segundo grau não comporta conhecimento.
Como se sabe, salvo situações pontuais, a prova documental deve ser produzida com a exordial ou a contestação, sob pena de preclusão, a teor do que dispõe o art. 434 da Lei Instrumental, in verbis: “Incumbe à parte instruir a petição inicial ou a contestação com os documentos destinados a provar suas alegações”.
Consabido, outrossim, que a prova documental juntada de forma extemporânea só pode ser admitida para: (i) demonstrar fatos ocorridos depois dos articulados quando da propositura da demanda ou da oferta de defesa; (ii) contrapô-los aos produzidos no caderno processual e; (iii) nas hipóteses de disponibilização ulterior (desde que demonstrada), tudo conforme preceitua o art. 435 do Código de Ritos, que assim dispõe:
Art. 435. É lícito às partes, em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos.
Parágrafo único. Admite-se também a juntada posterior de documentos formados após a petição inicial ou a contestação, bem como dos que se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis após esses atos, cabendo à parte que os produzir comprovar o motivo que a impediu de juntá-los anteriormente e incumbindo ao juiz, em qualquer caso, avaliar a conduta da parte de acordo com o art. 5º.
Acerca do tema, Cássio Scarpinella Bueno disserta:
Os documentos são produzidos pelo autor com a petição inicial e com o réu com sua contestação. É claro, a este respeito, o art. 434, caput, o suficiente, aliás, para se contrapor à tão comum quanto equivocada interpretação do art. 320 de que a inicial só deve ser acompanhada dos documentos indispensáveis.Outros documentos podem ser apresentados ao longo do processo, mas, para tanto, eles precisam ser novos no sentido que lhes dá o caput do art. 435: eles devem ser vocacionados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos “articulados”, isto é, da inicial e da contestação ou, ainda – e isto é imposição do princípio do contraditório -, para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos.A juntada de documentos após a inicial e/ou contestação, é também tema do parágrafo único do art. 435, que se refere a documentos novos no sentido de serem aqueles cuja formação se deu após a prática daqueles atos postulatórios (inicial e contestação) ou os que só se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis, após a prática daqueles mesmos atos. Em qualquer caso, cabe à` parte que requerer a juntada do documento comprovar a ocorrência daqueles permissivos. O magistrado avaliará a questão levando em consideração a boa-fé objetiva a que se refere o art. 5º. (in Manual de direito processual civil, 3ª edição. Editora Saraiva, 2017 p. 387-388).
Em complemento, Daniel Amorim Assumpção Neves professa:
O dispositivo legal tem nitidamente uma natureza preclusiva, prevendo que, após os momentos iniciais de manifestação das partes no processo, não mais seria cabível a produção de prova documental. O art. 435 do Novo CPC, entretanto, expressamente prevê exceções à rigidez da regra consagrada no dispositivo anterior.O art. 435, caput, do Novo CPC mantém as duas hipóteses já previstas no art. 397 do CPC/73: (i) para provar fatos supervenientes e (ii) para contrapor prova documental produzida nos autos. O parágrafo único do dispositivo inclui no sistema novas hipóteses de produção de prova documental em momento posterior à petição inicial e a contestação.Será admitida a juntada posterior de documentos formados após a petição inicial ou a contestação, bem como dos que se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis após esses atos, cabendo à parte que os produzir comprovar o motivo que a impediu de juntá-los anteriormente. (in Manual de Direito Processual Civil – Volume único. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 708-709).
No caso em apreço, porém, o instrumento coligido cinge-se à declaração de suposto vendedor do imóvel sub judice com a finalidade de comprovar as afirmações da parte autora, circunstância que diz de perto com a produção de prova oral.
Como melhor à frente se verá, a parte apelante deixou transcorrer in albis o prazo para apresentação de rol de testemunhas, não havendo falar, agora, em superação desta lacuna probatória por declaração intempestiva.
A fundamentação apresentada pelos recorrentes para a juntada de prova extemporânea, no ponto, é de que não tinham acesso ao vendedor Norberto Costa Rodrigues e ao Sr. Aléquis Sandro Corrêa, que somente se apresentaram após tomarem conhecimento do teor da sentença.
Tais alegações, entretanto, não são hábeis a justificar a colação a destempo do documento, justo que cabe às partes diligenciarem a colheita da prova de seu interesse no momento processual oportuno.
Frente a isso, de rigor o não conhecimento de aludido documento.
Além disso, ao final da peça recursal, os apelantes tencionam, em caso de manutenção da sentença de improcedência, que sejam indenizados pela acessão existente no imóvel, uma vez que sua genitora adquiriu onerosamente a casa.
Aludido pleito, entretanto, não consta da peça inaugural e, assim, não fez parte da causa de pedir que tramitou em primeiro grau de jurisdição, resultando em evidente inovação recursal.
Por essa razão, também inviável o conhecimento da pretensão recursal neste ponto. Aliás, em caso semelhante, assim já entendeu este Relator:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. RECURSO DOS AUTORES.ADMISSIBILIDADE. PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO PELA EDIFICAÇÃO CONSTRUÍDA SOBRE O TERRENO LITIGIOSO. PEDIDO QUE NÃO CONSTA DA EXORDIAL. INOVAÇÃO RECURSAL. PRINCÍPIO DA ADSTRIÇÃO, ADEMAIS, QUE DEVE SER RESPEITADO. QUESTÃO QUE PODE SER DEBATIDA EM AUTOS PRÓPRIOS.REQUISITOS PARA A AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA NÃO COMPROVADOS. EXERCÍCIO DA POSSE POR MERA PERMISSÃO. POSSE PRECÁRIA SEM “ANIMUS DOMINI” QUE NÃO ENSEJA USUCAPIÃO. EDIFICAÇÃO SOBRE O TERRENO QUE NÃO TEM O CONDÃO DE ALTERAR TAL CONCLUSÃO. SENTENÇA MANTIDA.HONORÁRIOS RECURSAIS. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO (TJSC, Apelação n. 0029251-08.2012.8.24.0064, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de minha relatoria, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 13-09-2022).
No restante, satisfeitos os pressupostos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, conhece-se do reclamo.
Cerceamento de defesa
Defendem os apelantes, outrossim, que a sentença deve ser desconstituída para ser reaberta a fase instrutória, asseverando que, se o juízo não se convenceu das teses inaugurais a partir dos elementos probatórios aportados, deveria requisitar maiores provas.
Aduzem, igualmente, que não foi possível arrolar testemunhas porque houve substabelecimento ao causídico que os patrocina no curso do processo, ocasião em que a Sra. Filomena (autora falecida) já estava acamada e senil, a qual, inclusive, não foi intimada pessoalmente para comparecer na audiência. Assim, considerando que houve pedido de produção de prova oral na inicial e na réplica, tencionam o retorno dos autos à origem para sua perfectibilização. Ponderam, por fim, que o réu Carlos Prudêncio igualmente não foi intimado pessoalmente para comparecer em audiência.
Pois bem.
Cediço que o ordenamento processual confere ao Julgador a qualidade de destinatário da prova, cumprindo ao Magistrado o indeferimento das diligências desnecessárias à composição da controvérsia, em observância ao princípio do livre convencimento motivado, previsto nos arts. 369, 370 e 371 Digesto Processual:
Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Nesse diapasão, transcreve-se o magistério de Daniel Amorim Assumpção Neves:
Atualmente o sistema de valoração adotado pelo sistema processual brasileiro é o da persuasão racional, também conhecido pelo princípio do livre convencimento motivado, no qual o juiz é livre para formar seu convencimento, dando às provas produzidas o peso que entender cabível em cada processo, não havendo uma hierarquia entre os meios de prova. Isso, claramente, não significa que o juiz possa decidir fora dos fatos alegados no processo, mas sim que dará aos fatos alegados a devida consideração diante das provas produzidas. (in Manual de Direito de Processual Civil. 8ª Edição. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 667, o original não ostenta os grifos).
Como destinatário da prova e condutor da instrução processual, é facultado ao juízo a quo determinar o julgamento antecipado do mérito, conquanto restem preenchidos os requisitos da legislação adjetiva, isto é: (i) que a questão seja exclusivamente de direito ou, não o sendo, que dispense a produção de prova em audiência; (ii) ou ainda, na hipótese de sujeição do réu aos efeitos da revelia (art. 355 do Código de Ritos).
Na dicção de Alexandre Freitas Câmara, o julgamento imediato do mérito tem assento “quando o juiz verificar que não há necessidade de produção de outras provas além daquelas já postas à disposição do processo”, seja “porque a prova documental já produzida era suficiente, ou porque houve uma produção antecipada de provas, ou por qualquer outra razão capaz de tornar dispensável o desenvolvimento de qualquer atividade posterior de produção de prova” (in O Novo Processo Civil Brasileiro. 1ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 212).
Evidentemente, a ponderação acerca da desnecessidade de instrução para fins de julgamento antecipado pertence ao Magistrado, cuja análise é eminentemente casuística, nos termos do que leciona Cassio Scarpinella Bueno:
Este equilíbrio entre desnecessidade de outras provas e realização do julgamento antecipado do mérito e necessidade de outras provas e sua vedação é uma constante a ser observada pelo magistrado em cada caso concreto. É na desnecessidade de uma fase instrutória, porque suficientes as provas já produzidas na fase postulatória, viabilizando que o processo ingresse, de imediato, na fase decisória que reside a razão de ser do instituto. (in Manual de Direito Processual Civil. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 330, grifou-se).
Dessarte, afigurando-se razoável o sopesamento do acervo probatório para fins de adoção do julgamento antecipado, não há que se falar em cerceamento de defesa, quando a dilação probatória não tiver o condão de influenciar no convencimento do julgador, tornando-se prescindível para fins de instrução.
E se assim o é, antes de consistir em violação ao primado do devido processo legal sob o viés do cerceamento de defesa (art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal), quando aplicado de forma escorreita, o julgamento antecipado traduz-se na concretização de valores processuais de maior relevo, sobretudo no que tange ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Magna Carta), aqui materializado através do reforço da razoável duração do processo (art. 5º, inciso LXXVIII, da CRFB/1988), bem como do princípio da isonomia à luz da seara processual (art. 5º, caput, da Carta de Garantias).
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO EM DECISÃO DA PRIMEIRA INSTÂNCIA MANTIDA EM GRAU DE APELAÇÃO. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO. REVISÃO. SÚMULA 7 DO STJ. PRECEDENTES DO STJ. DISSIDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COM-PROVADO. SÚMULA 284 DO STF.1. O STJ possui entendimento de que o magistrado tem ampla liberdade para analisar a conveniência e a necessidade da produção de provas, podendo proceder ao julgamento antecipado da lide, se considerar que há elementos nos autos suficientes para a formação da sua convicção quanto às questões de fato ou de direito vertidas no processo, sem que isso implique qualquer ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa.2. Para uma análise em sentido contrário, que leve à modificação do julgado, revela-se indispensável a reapreciação do conjunto probatório existente no processo, o que é vedado em Recurso Especial, em virtude do preceituado na Súmula 7/STJ.3. Inadmissível o recurso especial que, fundamentado na existência de divergência jurisprudencial, limita-se à mera transcrição de ementas, sem mencionar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, tampouco indica quais preceitos legais foram interpretados de modo dissentâneo, o que atrai a incidência da Súmula 284/STF.4. Agravo interno não provido. (STJ, AgInt no REsp 1.440.314/MS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 17-11-2016, grifo acrescido).
Por outro lado, “se ignorado o pedido de produção de prova pertinente e útil para comprovar alegação de fato formulada pelos litigantes, resta configurada restrição indevida do direito da parte e, portanto, afronta ao devido processo legal, o que impõe a desconstituição da sentença e o retorno dos autos à origem para regular instrução do feito” (TJSC, Apelação Cível n. 0300623-79.2015.8.24.0047, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 28-3-2017).
No caso em apreço, em que pese a afirmação de cerceamento de defesa, extrai-se dos autos que houve deferimento de ampla dilação probatória, inclusive a almejada prova oral pugnada pela então demandante (evento 96, decisão 111/114).
A autora, contudo, não apresentou o rol de testemunhas a tempo e modo, não justificou a impossibilidade de fazê-lo e, igualmente, não ofertou qualquer documentação a denotar que estava, de fato, acamada e/ou acometida de problema de saúde grave o suficiente que não lhe permitisse a desincumbência da prova. A propósito, mesmo neste momento processual, ao afirmar o cerceamento de defesa, não há qualquer indicativo de que sua produção a tempo e modo estivesse impossibilitada.
Neste mesmo sentir, embora os ora apelantes defendam que não houve intimação pessoal da genitora Filomena para comparecimento em audiência, verifica-se que a própria recorrente Sonia Regina de Souza subscreveu o mandado de intimação colacionado no evento 96, MAND123, que fora direcionado ao endereço de sua genitora (art. 274, parágrafo único, CPC).
Para além disso, a imprescindibilidade da intimação pessoal ocorre apenas na hipótese de haver requerimento, pelo adverso, do depoimento pessoal da parte (art. 385, §1º, CPC) – pedido probatório, porém, do qual houve desistência por quem o pleiteou (evento 96, TERMOAUD125).
Ainda neste ponto, convém destacar que pouco importa se foi realizada, ou não, intimação pessoal do Sr. Carlos Prudêncio para comparecimento em audiência – justo que não houve colação do rol de testigos pela parte autora e, além disso, inexistiu pedido de sua oitiva na réplica (evento 96, RÉPLICA74).
Como se observa, o caso é de evidente oportunização da prova e desinteresse em sua produção, quedando-se a acionante completamente silente. Manifesta, pois, a preclusão operada, ponto que foi bem equacionado no parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, a quem se pede vênias para transcrever o trecho abaixo, que passa a fazer parte da fundamentação do presente voto (evento 24, SG):
[…]
Ao contrário do alegado pelos recorrentes, foi concedido o prazo de 15 dias para a apresentação do rol de testemunhas para ambas as partes, sob pena de preclusão.
No que concerne à senhora xxxxxxxxxxx, embora tenha sido intimada pessoalmente para a audiência, através de sua filha xxxxxxxxxx, seu procurador desistiu da sua oitiva, não sendo mencionado em momento algum que tal desistência estivesse vinculada a motivos de ordem médica.
Ademais, o confrontante xxxxx foi devidamente intimado, e também restou inerte.
Dessa forma, constata-se que não ocorreu qualquer restrição ao direito de defesa, mas que, em verdade, os apelantes discordam da estratégia processual adotada pelo advogado de sua falecida genitora, que optou por dispensar a produção de prova testemunhal.
Não obstante a autora tenha pleiteado, tanto na petição inicial quanto na réplica, “a inquirição de testemunhas a serem arroladas em momento oportuno”, fato é que foi viabilizado o arrolamento das testemunhas, mas a parte se manteve silente.
Assim, tais requerimentos genéricos não possuem o condão de impedir o prosseguimento do processo, tampouco caracterizam cerceamento de defesa, visto que o polo ativo da demanda apenas indicou na fase recursal as testemunhas das quais pretendia colher depoimento oral, ocasião em que já havia se operado a preclusão.
[…]
Afasta-se, pois, a preliminar.
Mérito
A insurgência investe contra sentença de improcedência do pedido de declaração da aquisição da propriedade por meio da usucapião de um imóvel de 221,5 m² (com uma casa de alvenaria de 78m² construída), sito na rua João Manoel Luiz, fundos do n. 216, bairro Três de Maio, na Comarca de Capivari de Baixo/SC.
Em suma, a autora, agora sucedida processualmente por seus herdeiros, defendeu inicialmente que não tinha conhecimento se o imóvel estava registrado em nome de terceiros. Segundo sua versão, a posse do bem pertencia ao xxxxxxque, por sua vez, o alienou, em 29/03/2006, a xxxxxxx.
Esses, na sequência, em 28/06/2007, o venderam à Sra. Filomena (autora falecida), que, então, pugnando pela acessio possessionis dos antigos moradores, ajuizou a presente ação de usucapião em 2013.
À minuta do reclamo, os recorrentes (filhos de Filomena) ratificam que a posse sempre foi exercida por eles com animus domini e que não é crível que a ré Rosinete Porfírio tenha adquirido a totalidade do terreno, mas, paralelamente, tenha simplesmente permitido, sem qualquer oposição, que todos os antigos possuidores, assim como dona Filomena, residissem no imóvel por mera permissão ou tolerância. Ponderam, outrossim, que o valor de aquisição do imóvel por Rosinete é inferior ao da compra de Filomena, novamente colocando em xeque a veracidade do negócio sustentado pela ré.
Afirmam, por fim, que a documentação apresentada, notadamente os comprovantes de pagamento de IPTU e os recibos de aquisição da coisa, demonstram a posse com animus domini, razão pela fazem jus à declaração da propriedade.
Pois bem.
O Código Civil, ao dispor sobre a aquisição da propriedade imóvel, prevê em seu art. 1.241 que o possuidor poderá “requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel”.
A usucapião é um modo originário de aquisição da propriedade por meio da posse mansa, pacífica e ininterrupta da coisa imóvel durante o prazo estabelecido por lei, desde que munido de animus domini, isto é, da intenção de ser dono da coisa.
Nesse sentido, são as lições de Maria Helena Diniz:
Pela usucapião o legislador permite que uma determinada situação de fato, que, sem ser molestada, se alongou por um certo intervalo de tempo previsto em lei, se transforme em uma situação jurídica, atribuindo-se assim juridicidade a situações fáticas que amadureceram com o tempo. A usucapião tem por fundamento a consolidação da propriedade, dando juridicidade a uma situação de fato: a posse unida ao tempo.[…] O fundamento desse instituto é garantir a estabilidade e segurança da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se podem mais levantar dúvidas ou contestações a respeito e sanar a ausência de título do possuidor, bem como os vícios intrínsecos do título que esse mesmo possuidor, porventura, tiver. (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 4 v. P. 157).
Para que se possa reconhecer a usucapião, é necessário preencher certos requisitos pessoais, reais e formais impostos pelo legislador. Os primeiros dizem respeito às figuras do possuidor, que busca adquirir a coisa, e do proprietário desta e são os mesmos requisitos previstos para os casos de impedimento, suspensão ou interrupção da prescrição, dispostos nos arts. 197 a 202 do Código Civil.
Os reais, por sua vez, são relativos à coisa, isto é, trazem exigências aos bens para que possam ser objeto de usucapião, já que nem todos o podem ser, como no caso de bens públicos inalienáveis.
Por fim, tem-se os requisitos formais, consistentes na posse e tempo (requisitos comuns) e no justo título e boa-fé (requisitos especiais).
Dito isso, passa-se a analisar, então, a possibilidade de reconhecimento e declaração da usucapião especial de imóvel urbano, para a qual, basta a demonstração de posse para moradia de imóvel urbano de até 250m², com animus domini, durante cinco anos ininterruptos, in verbis:
CC, Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1 o O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2 o O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
No caso em apreço, para comprovar a alegada posse mansa, pacífica e com ânimo de dono por prazo superior a 5 anos, a parte autora coligiu aos autos: (1) recibo de compra e venda, datado de 28/07/2007, denotando que os Srs. Adriana Cheiper Américo e Heriberto Ferreira Américo alienaram um terreno de 196 m², com uma casa de alvenaria construída de 78 m², aos Srs. Terezinha de Souza Laurindo e José Carlos Laurindo; (2) ART relacionado ao serviço de levantamento do terreno (evento 96, INF14); (3) memorial descritivo do imóvel (evento 96, INF15, evento 96, INF16 e evento 96, INF17); (4) certidão dando conta de que não há registro de matrícula para imóvel com tais confrontações (evento 96, INF18, evento 96, INF27, evento 96, INF28).
Sucede que, na contestação, a requerida xxxxx afirmou que adquiriu a integralidade do terreno do proprietário registral, Sr. xxxxx, em 17/10/2003, apresentando a matrícula do imóvel inscrita sob o n. 537 no CRI da comarca de Capivaria de Baixo (evento 96, INF63).
Neste sentir, sua tese de defesa é de que, quando comprara o bem, o Sr. Aléquis residia em uma das casas que existem sobre o terreno, sendo ele devidamente informado sobre a aquisição, ocasião em que assumiu o compromisso de deixar o imóvel quando lhe fosse solicitado pela Sra. Rosinete.
Alega a requerida, contudo, que, na noite seguinte, quem estava morando no imóvel eram o Sr. Laurindo e a Sra. Terezinha, os quais, posteriormente, passaram a casa para a Sra. Filomena.
Segundo sua versão, a ré informou à autora que era a verdadeira proprietária de todo o terreno, mas, em razão de sua idade avançada, a título de mera permissão e tolerância, autorizou que a sra. Filomena, idosa, continuasse morando na casa.
Cotejando todos os elementos probatórios, o contexto dos autos denota que a gleba usucapienda está dentro do terreno pertencente e ocupado por xxxx. Nesse sentido, de acordo com as testemunhas ouvidas sob o crivo do contraditório, é possível concluir que sobre o imóvel pertencente à xxxxxx existem duas casas edificadas: a da frente de madeira (antes havia uma de alvenaria, que xxxxx demoliu e refez em madeira) e a que fica nos fundos, onde a xxxxxx morava, de alvenaria.
De acordo com os testigos ouvidos, a xxxxx efetivamente adquiriu a integralidade do terreno do Sr. Norberto, que já tinha as duas casas edificadas, e é compreendida pela comunidade como verdadeira proprietária da totalidade do imóvel, a despeito de terem morado outras pessoas na residência que fica na parte de trás.
O Sr. Nazareno de Souza Alfredo, vizinho e ouvido sob o crivo do contraditório (evento 98, doc. 143), relatou que nunca ouviu ninguém questionar a posse e propriedade do terreno que pertencem à Rosinete. Afirmou, outrossim, que a casa de alvenaria que fica na parte de trás provavelmente foi construída por Aléquis e já estava edificada quando a Sra. Rosinete a comprou Vejamos a transcrição de sua oitiva:
Que o depoente sabe onde fica a casa da dona Rosinete e da dona Filomena. Que o depoente acha que já existia a casa dos fundos quando dona Rosinete comprou o imóvel, mas não tem certeza. Que antes da dona Filomena, morava na casa uma mulher baixinha e a filha dela, mas o depoente não recorda o nome. Que o depoente recorda que antes morava o Sr. Aléquis. Que quando Aléquis morava na casa, o imóvel era da Rosinete. Que o depoente não sabe se Rosinete era tida como dona do terreno, mas era já morava ali. Que tem a casa da Rosinete e atrás tem outra edificação. Que durante o tempo que o depoente mora ali, nunca ouviu falar que o terreno não seria da dona Rosinete.
Que o depoente mora na região há uns 24 anos. Que o deponte não lembra com certeza quem vendeu o imóvel para Rosinete, mas foi o Norberto ou o Zequinha. Que o depoente recorda do Sr. José João Correa, que é o seu Zequinha. Que Aléquis morou no imóvel e o depoente acha que foi ele que construiu a casa, mas não tem certeza. Que o depoente não recorda se é tudo cercado. Que o depoente conhece o seu Aléquis, mas não conhece a dona Filomena, só vê falar no nome dela. Que o depoente não sabe dizer se eles moravam ali de favor. Que o depoente não conhece dona Filomena e nem o falecido marido dela. Que a dona Filomena está morando agora, tem uns dois anos. Que as pessoas falaram que ela estava morando lá. Que o depoente viu passando um rapaz e falaram que era filho dela, por isso comentaram que era estava morando lá. Que o depoente não sabe o nome do rapaz. Que a esposa do depoente cuidou do filho da Rosinete quando ela se mudou para o imóvel. Que o filho da Rosinete agora já tem uns 20 anos, mas antes tinha uns 3 ou 4 anos. Que são duas casas no terreno. Que a casa da Rose agora é de madeira. Que a da Filomena é de material. Que tinha uma casa de alvenaria no imóvel que foi demolida por Rosinete, ocasião em que edificou no lugar uma casa de madeira. Que, além da casa onde a Rosinete mora, tem uma segunda casa no terreno. Que o depoente não sabe quem construiu essa segunda casa, mas o Aléquis morava ali. Que o depoente não sabe se Rosinete cedeu a casa dos fundos para alguém morar, que não sabe de nada.
Maria das Graças Afonso Vicente, também ouvida na qualidade de testemunha (evento 98, doc. 143), também confirmou que, quando a Sra. Rosinete comprou o imóvel, já havia duas casas edificadas sobre o terreno e que o Sr. Aléquis morava em uma delas. Relatou, outrossim, que Rosinete comprou o terreno todo e que as pessoas que se mudaram para o imóvel de Aléquis posteriormente o faziam durante a noite, de forma clandestina. Observe-se:
Que a depoente conhece a Rosinete de vista. Que a depoente mora na região há 28 anos. Que a depoente não recorda quando Rosinete comprou o terreno. Que quando Rosinete comprou o imóvel, existia outra casa edificada no terreno, atrás da casa onde ela mora. Que quem morava na outra residência era o Aléquis. Que a Rosinete tem a escritura do lote todo. Que a depoente acha que ela comprou o lote todo. Que antes morava o Aléquis. Que eles faziam a mudança durante a noite. Que a depoente não lembra do Sr. José João Correa. Que a depoente lembra do Sr. Eriberto, que morou no local. Que o Sr. Eriberto trocou com o Aléquis. Que o Sr. Aléquis chegou a cercar o lote. Que depois moraram outras pessoas.
Que a Rosinete é cuidadora de idosos. Que a Filomena mora na casa dos fundos. Que a depoente não sabe quando Filomena se mudou, porque moravam uns vizinhos e eles se mudavam de noite e quando iam ver tinha outra pessoa nova. Que antes da dona Filomena tinham outras pessoas. Que tem um muro dividindo as duas casas. Que os portões das duas casas dão para a rua.
Unido a este contexto, a acionada colacionou aos autos o registro do imóvel junto à prefeitura municipal (evento 96, INF61), donde se infere que apesar de haver cadastro separado de ambas as glebas que compõem o terreno, todas estão em nome da ora apelada, e não de Filomena.
E, embora os apelantes pretendam mostrar o ânimo de dono de sua posse, os boletos de IPTU relacionados ao imóvel usucapiendo aportado pela autora, tal qual o registro apresentado pela ré, também estão todos em nome da apelada Rosinete Porfirio (evento 96, INF9 e evento 96, INF10), situação que não contribui para a afirmação de ocupação do imóvel com animus domini.
Assim, em que pese seja incontroverso que houve, de fato, outras pessoas que residiram na gleba que pretendem os apelantes usucapir, não há prova suficiente do ânimo de dono do Sr. Aléquis e dos demais moradores que o sucederam.
Como visto, de acordo com a prova oral, quando o Sr. Aléquis residia em uma das casas, a titularidade do imóvel passou a ser de Rosinete e não houve qualquer contestação, por quem quer que seja (de acordo com Nazareno), de que não seria ela a verdadeira possuidora do bem.
Nesse sentido, se era reconhecida como efetiva dona do imóvel, certo é que a continuidade da moradia do Sr. Aléquis deu-se como ato de mera permissão ou tolerância da proprietária, que não importa em posse ad usucapionem.
E igual situação enleia o uso do bem pelos demais moradores, já que, “Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida” (art. 1.203 do CC) e não houve prova, por parte da autora/sucessores, de que quaisquer dos moradores tenham agido como se donos fossem ou se insurgido à qualidade de possuidora de Rosinete. Para todos os efeitos, portanto, o caráter de detentor de Alex transmitiu-se aos demais – o que é mais ainda corroborado neste caso concreto, porquanto todos os moradores realizaram a mudança no período da noite, de forma clandestina.
Para além disso, os recorrentes afirmam que o ânimo de dono emergiu quando o Sr. Aléquis separou as duas casas com um muro, o que foi afirmado pela Sra. Maria das Graças. Neste particular, contudo, a Procuradoria-Geral de Justiça, atenta à verdade dos fatos, bem observou que “ao examinar imagem obtida do street view do Google Maps, nota-se que inexiste muro entre as casas, havendo apenas uma estrutura que circunda ambas”, apontando a seguinte imagem (evento 24, SG):
Ainda com base nisso, não se sustenta a afirmação dos recorrentes de que o preço de aquisição por Rosinete não justificaria a aquisição das duas casas, mas tão somente de uma. Com efeito, “é perceptível que se tratam de construções simples, o que refuta a assertiva dos recorrentes no sentido de que o montante pago por Rosinete Porfírio seria insuficiente para a aquisição do terreno inteiro, o qual, na época, possuía uma das casas de madeira, conforme narrado na audiência judicial” (trecho extraído do parecer da PGJ).
Ou seja, o arcabouço probatório é carente de demonstração cabal do uso do imóvel pelos antecessores da autora falecida, por ela mesma e, agora, de seus filhos, com ânimo de dono, fato constitutivo do direito que competia ao polo ativo comprovar (art. 373, I, do CPC).
A propósito, é o que entende esta Corte:
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM. RECURSO DOS AUTORES. ALEGADA DEMONSTRAÇÃO DA POSSE MANSA E PACÍFICA POR MAIS DE VINTE ANOS. REJEIÇÃO. POSSE PRECÁRIA CARACTERIZADA. CONTRATO DE COMODATO. PERMISSÃO OU TOLERÂNCIA QUE NÃO INDUZ POSSE. TRANSMUDAÇÃO DA POSSE PRECÁRIA NÃO DEMONSTRADA. AUSÊNCIA DE ABANDONO PELOS PROPRIETÁRIOS. DEFENDIDO AFASTAMENTO DA MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. NÃO ACOLHIMENTO. NÍTIDA ALTERAÇÃO DA VERDADE DOS FATOS. OMISSÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA FIRMADA COM OS PROPRIETÁRIOS DO IMÓVEL. VALOR RAZOÁVEL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (TJSC, Apelação n. 5002036-36.2021.8.24.0070, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Helio David Vieira Figueira dos Santos, Quarta Câmara de Direito Civil, j. 23-05-2024, grifou-se).
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. IMÓVEL RURAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DOS AUTORES. AUTOR E IRMÃO QUE ADQUIRIRAM IMÓVEL EM CONJUNTO E INSTITUÍRAM USUFRUTO VITALÍCIO EM FAVOR DOS PAIS. FALECIMENTO DO IRMÃO DO AUTOR. ALEGAÇÃO DE QUE O IRMÃO FALECIDO NUNCA RESIDIU NO IMÓVEL, E DE QUE A POSSE DA TOTALIDADE DA ÁREA SEMPRE FOI EXERCIDA, DE FORMA MANSA, PACÍFICA E COM ÂNIMO DE DONO, PELO AUTOR E A ESPOSA QUE LÁ RESIDEM COM O PAI DO AUTOR HÁ MAIS DE VINTE ANOS. INSUBSISTÊNCIA. AUTORES QUE RESIDEM NO IMÓVEL POR MERA PERMISSÃO E TOLERÂNCIA DO USUFRUTUÁRIO, ESTE QUE EXERCE A POSSE DIREITA SOBRE O BEM. POSSE INDIRETA DO COPROPRIETÁRIO QUE, NESSAS CIRCUNSTÂNCIAS, MANTEVE-SE INALTERADA. PROVA DOCUMENTAL E ORAL PRODUZIDAS QUE RESPALDAM A TESE QUE OS AUTORES NÃO PREENCHERAM O REQUISITO DE ANIMUS DOMINI PARA AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE, DADO O USUFRUTO AINDA VIGENTE E EXERCIDO PELO GENITOR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO (TJSC, Apelação n. 0300353-55.2018.8.24.0013, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Saul Steil, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 07-05-2024).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA.INSURGÊNCIA DA PARTE AUTORA.USUCAPIÃO DE IMÓVEL URBANO. PRETENSÃO EXORDIAL DE RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA.PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE DOMÍNIO DO IMÓVEL LITIGIOSO. INVIABILIDADE. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA QUE O IMÓVEL FOI CEDIDO A TÍTULO DE COMODATO VERBAL PELO DEMANDADO EM VIRTUDE DA RELAÇÃO DE PARENTESCO ENTRE AS PARTES. POSSE PRECÁRIA CARACTERIZADA. AUSÊNCIA DE ANIMUS DOMINI. PODER FÁTICO EXERCIDO POR MERA PERMISSÃO E TOLERÂNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.208 DO DIPLOMA CIVILISTA. INOCORRÊNCIA DE TRANSMUDAÇÃO DA POSSE PRECÁRIA PARA AQUELA COM CARÁTER AD USUCAPIONEM. REALIZAÇÃO DE REFORMAS NO IMÓVEL E PAGAMENTO DE FATURAS DE ENERGIA ELÉTRICA E DE TARIFA DE ÁGUA PELO AUTOR. CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO REPRESENTAM OPOSIÇÃO À DETENÇÃO ATÉ ENTÃO EXERCIDA. PRESUNÇÃO DE CONTINUIDADE DO CARÁTER DA POSSE TAL QUAL FOI ORIGINALMENTE ADQUIRIDA (ART. 1.203, CC). “A posse oriunda de contrato de comodato impede a caracterização de animus domini, não podendo o período de vigência do contrato ser computado para aferição de usucapião” (STJ, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 133.028, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 8-5-2012). TESE DE CONTRATO VERBAL DE COMPRA E VENDA CELEBRADO COM O PROPRIETÁRIO DO BEM. EVENTUAL COMPROVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO DEFENDIDO PELA PARTE AUTORA QUE CARACTERIZARIA AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE E DE IGUAL MODO INVIABILIZARIA A PRETENSÃO DE USUCAPIÃO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO (TJSC, Apelação n. 5000559-57.2019.8.24.0034, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Carlos Roberto da Silva, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 15-02-2024).
Logo, à míngua de prova cabal de posse do imóvel com ânimo de dono, tem-se que a aquisição originária da propriedade acha-se frustrada, mantendo-se a improcedência dos pedidos iniciais.
Por fim, quanto uma vez que preenchidos os requisitos para tanto (STJ, Embargos de Declaração no Agravo Interno em Recurso Especial n. 1.573.573/RJ, julgado em 04/04/2017, sob relatoria do eminente Ministro Marco Aurélio Bellizze), fixa-se honorários recursais, em favor do causídico da parte ré, no patamar de 2% sobre o valor da causa, consoante art. 85, §§2º e 11, do Código de Processo Civil.
Permanece sua exigibilidade suspensa pelo prazo extintivo de 5 anos, frente à gratuidade judiciária da qual a parte apelante é beneficiária.
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer em parte do recurso e, nesta extensão, negar-lhe provimento, fixando honorários recursais, cuja exigibilidade remanesce suspensa.
Apelação Nº 0500167-59.2013.8.24.0163/SC
RELATOR: Desembargador ANDRÉ CARVALHO
EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DOS SUCESSORES DA AUTORA.
ADMISSIBILIDADE. DOCUMENTO JUNTADO APÓS A INTERPOSIÇÃO DO RECURSO QUE NÃO SE SUBSOME ÀS EXCEÇÕES LEGAIS DO ART. 435 DO CPC. NÃO CONHECIMENTO. PRETENSÃO RECURSAL DE INDENIZAÇÃO PELA EDIFICAÇÃO DO IMÓVEL EM CASO DE MANUTENÇÃO DA IMPROCEDÊNCIA. PLEITO NÃO CONSTANTE NA CAUSA DE PEDIR INICIAL. INOVAÇÃO RECURSAL. NÃO CONHECIMENTO.
PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. OPORTUNIZADA AMPLA DILAÇÃO PROBATÓRIA. SILÊNCIO DO POLO ATIVO. PRECLUSÃO. INEXISTÊNCIA DE INDICATIVO MÍNIMO QUE COMPROVASSE A IMPOSSIBILIDADE DE DESINCUMBÊNCIA A TEMPO E MODO. PREFACIAL AFASTADA.
MÉRITO. TERRENO COM DUAS RESIDÊNCIAS EDIFICADAS, UMA DE MADEIRA (NA PARTE DA FRENTE) E OUTRA DE ALVENARIA (NA PARTE DE TRÁS). TENCIONADA A USUCAPIÃO DE GLEBA DO TERRENO EM QUE ESTÁ SITUADA A CASA DE ALVENARIA.
PROVA ORAL DANDO CONTA DE QUE A REQUERIDA ADQUIRIU A INTEGRALIDADE DO TERRENO, EM 2003, DO PROPRIETÁRIO REGISTRAL. IMÓVEL QUE JÁ CONTAVA COM AS DUAS CASAS EDIFICADAS. COMPRADORA QUE PASSOU A RESIDIR NA CASA DA FRENTE. MORADOR DA CASA DE TRÁS QUE ESTAVA CIENTE DA AQUISIÇÃO. TESTEMUNHAS AFIRMANDO QUE O DOMÍNIO DA ADQUIRENTE NUNCA FOI CONTESTADO. PERMANÊNCIA DO MORADOR DA CASA DE TRÁS, PORTANTO, A TÍTULO DE MERA PERMISSÃO E TOLERÂNCIA. TRANSMISSÃO DA POSSE AOS MORADORES SEGUINTES, INCLUSIVE À AUTORA, COM A MESMA QUALIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.203 DO CC. TRANSMUTAÇÃO DA POSSE PRECÁRIA NÃO DEMONSTRADA. AINDA, MUDANÇA DOS RESIDENTES DURANTE A NOITE, DE FORMA CLANDESTINA. POR FIM, REGISTROS SEPARADOS DAS DUAS GLEBAS PERANTE A PREFEITURA, MAS AMBOS EM NOME DA REQUERIDA. EXERCÍCIO DA POSSE COM ANIMUS DOMINI NÃO DEMONSTRADO. ÔNUS DA PROVA QUE INCUMBE À PARTE AUTORA. FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO (ART. 373, I, CPC). PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA NO MESMO SENTIDO. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.
HONORÁRIOS RECURSAIS, OBSERVADA A GRATUIDADE JUDICIÁRIA.
RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 3ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer em parte do recurso e, nesta extensão, negar-lhe provimento, fixando honorários recursais, cuja exigibilidade remanesce suspensa, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Florianópolis, 23 de julho de 2024.