Usucapião: loteamento irregular

Usucapião: loteamento irregular: Ainda que o imóvel que se pretende usucapir integre loteamento irregular, tal circunstância não impede, per se, o reconhecimento da propriedade se for comprovado o atendimento aos pressupostos legais da usucapião.

Processo: 0301872-48.2017.8.24.0030 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Silvio Dagoberto Orsatto
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Primeira Câmara de Direito Civil
Julgado em: 07/12/2023
Classe: Apelação

Apelação Nº 0301872-48.2017.8.24.0030/SC

+ Usucapião ou adjudicação compulsória?

RELATOR: Desembargador SILVIO DAGOBERTO ORSATTO

APELANTE: FABIANO NUNES DANIEL (AUTOR) APELADO: Juízo da 2ª Vara da Comarca de Imbituba

RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Cível interposta por F. N. D. contra a sentença proferida pelo juízo da 2ª Vara da comarca de Imbituba que, nos autos da Ação de Usucapião Extraordinária n. 0301872-48.2017.8.24.0030 ajuizada por F. N. D., julgou extinto o processo, sem análise de mérito, nos seguintes termos (evento 89, DOC1):
Ante o exposto, considerando a impossibilidade jurídica do pedido de usucapião porque detém a propriedade do bem em razão de negócio jurídico prévio, JULGO EXTINTO o processo sem resolução de mérito, ex vi do disposto no art. 485, inciso VI, do Código de Processo Civil. 
Custas pela parte autora.
Em consequência, condeno o autor ao pagamento de honorários advocatícios na base de 10% do valor atualizado da causa, em favor dos procuradores do Município de Imbituba, considerando a simplicidade da causa e o julgamento antecipado.
P.R.I.
Transitada em julgado, dê-se baixa e arquive-se.
Em atenção ao princípio da celeridade processual e a fim de evitar tautologia, adota-se o relatório da sentença apelada (evento 89, DOC1):
Vistos e examinados.

+ Qual o tempo de posse necessário para a usucapião de um imóvel

F. N. D., qualificado nos autos, ajuizou a presente ação de usucapião, objetivando a aquisição do título de propriedade do imóvel descrito na exordial, situado na Rua Pedro Inácio Pacheco, Vila Santo Antônio, Imbituba, com área total de 618,860m². Alegou que exerce mansa e pacificamente, sem contestação, a posse do imóvel, embasada em justo título e boa-fé, há mais de 15 anos, possuindo-o com animus domini. Juntou procuração e documentos.
O Município de Imbituba apresentou contestação (ev. 64), aduzindo  a inadequação da via eleita, pois o bem objeto do feito integra área maior matriculada, além de se tratar a área de loteamento clandestino, objeto da ACP n. 0300657-08.2015.8.24.0030. Aduziu outras questões ligadas à inobservâncias das metragens mínimas reservadas à via pública que confronta com o imóvel, pugnando pela extinção do feito.
Réplica no ev. 77.
O Ministério Público no ev. 85, foi pela extinção do feito.
Vieram-me os autos conclusos. 
Inconformado, o apelante sustentou, em resumo, que adquiriu o imóvel objeto da lide em 22/07/2011, o qual possui área de 618,860m² e está inscrito perante a municipalidade sob o n. 02.01.089.204.1746.001-18815. Salientou que o bem integra uma área maior de 411.076,075 m², esta matriculada sob n. 13.953 junto ao CRI da comarca de Imbituba, sob titularidade registral da empresa E. S/A. Ponderou que se somada a sua posse com a dos antecessores, o lapso temporal supera 20 anos, e que a aquisição do imóvel não foi diretamente da proprietária registral, tecendo comentários acerca da cadeia possessória que o antecedeu. Discorreu que não há outra alternativa para regularização da propriedade, senão a via eleita, tendo, ao final, pugnado pelo provimento do recurso (evento 100, DOC1).

+ É possível usucapião de automóvel ou de outro bem móvel?

Em juízo de retratação, a sentença foi mantida por seus próprios fundamentos (evento 103, DOC1).
Após, ascenderam os autos a esta Corte de Justiça.
Em parecer da lavra da eminente Procuradora Gladys Afonso, a Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se, dentre outros, pelo conhecimento e desprovimento do recurso (evento 8, DOC1).
É o relatório.

VOTO

Exame de Admissibilidade Recursal
Preenchidos os requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, conhece-se do recurso e passa-se à sua análise. 

+ Usucapião: alteração do caráter originário da posse

Mérito
O cerne da questão jurídica cinge-se ao pedido de reconhecimento da usucapião extraordinária que, na origem, foi julgado extinto, dentre outros, ante a alegada impossibilidade jurídica do pedido.
No que toca à usucapião, que é modo de aquisição originária da propriedade, entre as modalidades existentes no ordenamento jurídico, há três elementos que necessariamente devem estar preenchidos para o reconhecimento do domínio, são eles: animus domini, inexistência de oposição à posse e, ainda, posse ininterrupta por um período de tempo. Pode-se, ainda, somar a posse do atual possuidor àquele de seus antecessores para contagem do tempo exigido, conforme viabiliza o art. 1.243 do Código Civil.
Outrossim, a decisão que declara a prescrição aquisitiva reconhece um direito já existente com a posse ad usucapionem, desde que preenchidos os requisitos da usucapião àquele que conferiu sentido ao direito e/ou atribuiu utilidade à propriedade (ex vi residência própria ou de sua família), cumprindo, assim, a sua função social. Desse modo, frisa-se que embora a sentença contenha conteúdo decisório, é certo possui caráter eminentemente declaratório.  
Sobre o assunto, ensina o doutrinador José Carlos de Moraes: 
“A sentença, portanto, nada transfere, uma vez que usucapião é modo originário de aquisição (…). Serve, entretanto como título para o registro no cartório de registro de imóveis, o que dará publicidade à aquisição, assegurará a continuidade do registro, resguardando a boa-fé de terceiros e possibilitará o jus disponiendi por parte do prescribente”. (SALLES, José Carlos de Moraes, Usucapião de Bens Imóveis e Móveis. 6. ed., São Paulo: RT, 2006, p. 234).
O recurso posto sob julgamento, adianta-se, excepcionalmente comporta provimento.
No caso em análise, observa-se que o autor ajuizou ação de usucapião objetivando a aquisição da propriedade pela prescrição aquisitiva de determinado terreno com área de 618,860m², integrante de uma área maior de 411.076,075 m², esta matriculada sob n. 13.953 junto ao CRI da comarca de Imbituba/SC, atualmente sob titularidade da empresa E. S/A (evento 85, DOC2), cuja fração litigada, por sua vez, não possui matrícula registral própria.

+ O que é posse de boa-fé?

E analisando atentamente os autos, observa-se que a pretensão inicial é fundamentada, dentre outros, em contratos particulares de compra e venda firmados, cronologicamente, entre: 
a) a titular registral E. S/A e H. M., em 19/10/1990 (evento 1, DOC10); 
b) H. M. e sua esposa L. de J. M e a adquirente R. M. V. de S., em 08/06/2005 (evento 1, DOC8 e evento 1, DOC9); 
c) R. M. V. de S. e os adquirentes G. A. de C. e R. de C. M. de C. em 28/11/2006 (evento 1, DOC7), e, por fim: 
d) G. A. de C. e sua esposa R. de C. M. de C. e o adquirente, ora autorapelante, F. N. D., em 22/07/2011 (evento 1, DOC5 e evento 1, DOC6).
Tais circunstâncias, de fato, denotam aquisição derivada da propriedade.
Nesse panorama, convém registrar que, em regra, a jurisprudência  entende ser incabível o manejo de ação de usucapião quando o contexto fático ensejador da demanda estiver amparado por compromisso/contrato de compra e venda, porque esta e aquela são formas distintas de aquisição da propriedade, sendo este, inclusive, o argumento central ocasionador da extinção na origem.
No entanto, os tribunais mais recentemente têm flexibilizado essa inviabilidade quando a almejada usucapião, mesmo debruçando-se sobre questão envolvendo prévia aquisição derivada da propriedade, fundamentar-se na dificuldade de regularização da questão pela via administrativa, o que deve ser verificado pontualmente em cada caso concreto submetido à análise do Estado-juiz.
Para melhor visualização, destaca-se o seguinte e recente precedente deste Tribunal de Justiça:

+ O que é posse justa?

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO ORDINÁRIA. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. RECURSO DOS AUTORES. PRETENDIDA A REFORMA DA SENTENÇA PARA RECONHECER O INTERESSE DE AGIR E O DIREITO À PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. ACOLHIMENTO EM PARTE. IMÓVEL ADQUIRIDO PELA GENITORA DOS DEMANDANTES ATRAVÉS DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA CELEBRADO COM UM DOS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS. POSTERIOR CESSÃO DO IMÓVEL AOS AUTORES POR MEIO DE INSTRUMENTO PARTICULAR DE CESSÃO DE POSSE. NEGÓCIOS JURÍDICOS NÃO AVERBADOS NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. GENITORA E REQUERENTES QUE NUNCA FORAM ALÇADOS À CONDIÇÃO DE PROPRIETÁRIOS. ADEMAIS, IMÓVEL LOCALIZADO EM ÁREA MAIOR, SEM MATRÍCULA INDIVIDUALIZADA E SITUADO EM ÁREA CLANDESTINA. CASO CONCRETO EM QUE SE REVELA DIFÍCIL DAR SEGUIMENTO À OBTENÇÃO DO REGISTRO DA PROPRIEDADE. PEDIDO DE DECLARAÇÃO DA PROPRIEDADE PELA USUCAPIÃO NECESSÁRIO E ADEQUADO. CONDIÇÕES DA AÇÃO PRESENTES. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. CONTUDO, INVIÁVEL O IMEDIATO JULGAMENTO (ART. 1.013, § 3º, I, DO CPC) DIANTE DA NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Os precedentes mais recentes acerca da temática têm permitido considerar, mesmo nas hipóteses de aquisição derivada da propriedade, que a ocupação há muito consolidada de determinada área, de sorte a preencher os requisitos da aquisição do domínio pela usucapião, pode ser buscada nesta via. É o caso, por exemplo, em que se revelar difícil ou impossível dar seguimento à obtenção do registro da propriedade com base no contrato de compra e venda por eventuais dificuldades apresentadas no caso concreto (REsp n. 1818564/DF, Min. Moura Ribeiro).Dessa forma, diante das dificuldades narradas no feito e não se evidenciando a má-fé dos adquirentes, é certo que o pedido de declaração da propriedade pela usucapião se afigura necessário e adequado para o fim pretendido, de sorte a tornar presentes as condições da ação.[…] (TJSC, Apelação n. 0301876-32.2015.8.24.0038, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 31-05-2022). HONORÁRIOS RECURSAIS INCABÍVEIS. RECURSO DOS AUTORES CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0300632-95.2016.8.24.0050, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Joao Marcos Buch, Oitava Câmara de Direito Civil, j. 10-10-2023).
A princípio, é o caso dos autos.

+ Qual a diferença entre posse e detenção?

Veja-se que a fração de área usucapienda não possui matrícula aberta junto ao respectivo CRI de abrangência territorial e, ainda, está situada em área de loteamento/desmembramento irregular, tanto que é objeto da Ação Civil Pública n. 0300657-08.2015.8.24.0030 em trâmite perante o Juízo da 2ª Vara da comarca de Imbituba/SC (evento 64, DOC87 e evento 64, DOC88), deflagrada pelo poder público municipal, dando claros indicativos de que o parcelamento da propriedade não seria aprovado pela municipalidade sob o argumento de descumprimento da legislação aplicável.
Com efeito, a atividade do parcelamento do solo é uma política que tem como ferramenta o planejamento urbano, para que o crescimento não se opere de forma desordenada, mas, dentro do adequado ordenamento territorial, nos termos do art. 30, VIII, da CF. A Lei Federal n. 6.766/79 disciplinou a matéria, estabelecendo em seu art. 2º que “o parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento”.    
Como instrução para as ações do parcelamento do solo, necessária a observância dos parâmetros da Lei Federal n. 6.766/1979; da Lei Estadual n. 17.492/2018 e das Leis do Plano Diretor de cada município.
Ocorre que, embora seja da responsabilidade do proprietário do imóvel a implementação do parcelamento do solo (art. 2º-A da Lei Federal), essa é uma medida que compete ao Município promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, conforme art. 30, VIII, da Constituição Republicana de 1.988.

+ O que é posse direta e posse indireta?

Na mesma linha, destaca-se que o art. 40 da Lei n. 6.766/79 ratifica a responsabilidade do Município para regularizar os loteamentos clandestinos e os executados em desconformidade com o projeto. Desse modo, possui o Município o poder-dever de proteger o ordenamento territorial, cuidando da infraestrutura necessária aos loteamentos urbanos, bem como os irregulares e clandestinos, de modo que, poderá se sub-rogar no direito de cobrar posteriormente dos eventuais responsáveis, como por exemplo o loteador. 
A propósito, assim decidiu o Tribunal da Cidadania:   
Existe o poder-dever do Município de regularizar loteamentos clandestinos ou irregulares. Esse poder-dever, contudo, fica restrito à realização das obras essenciais a serem implantadas em conformidade com a legislação urbanística local (art. 40, caput e § 5º, da Lei nº 6.799/79). Após fazer a regularização, o Município tem também o poder-dever de cobrar dos responsáveis (ex: loteador) os custos que teve para realizar a sua atuação saneadora. STJ. 1ª Seção. REsp 1.164.893-SE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 23/11/2016 (Info 651). 
Desse modo, importa reconhecer que no presente caso, impedir o processamento da ação sob o argumento da irregularidade do parcelamento do solo, não se coaduna com o próprio instituto da usucapião, que, por ser forma de aquisição da propriedade de forma originária, desvincula-se de direitos obrigacionais ou dos direitos reais com o proprietário anterior. 
Acerca do tema, em julgamento de repetitivo foi fixada tese no Tema 1025 pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme ementa a seguir transcrita:   

+ Quem mora de favor pode pedir usucapião?

RECURSO ESPECIAL CONTRA ACÓRDÃO PROFERIDO NO JULGAMENTO DE IRDR. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. BEM IMÓVEL URBANO. ÁREA INTEGRANTE DE LOTEAMENTO IRREGULAR. SETOR TRADICIONAL DE PLANALTINA. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. FORMA ORIGINÁRIA DE AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE. POSSIBILIDADE DE REGISTRO. O RECONHECIMENTO DO DOMÍNIO DO IMÓVEL NÃO INTERFERE NA DIMENSÃO URBANÍSTICA DO USO DA PROPRIEDADE. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. RECURSO DESPROVIDO. 1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016.   2. A possibilidade de registro da sentença declaratória da usucapião não é pressuposta ao reconhecimento do direito material em testilha, o qual se funda, essencialmente, na posse ad usucapionem e no decurso do tempo. 3. A prescrição aquisitiva é forma originária de aquisição da propriedade e a sentença judicial que a reconhece tem natureza eminentemente declaratória, mas também com carga constitutiva.   4. Não se deve confundir o direito de propriedade declarado pela sentença proferida na ação de usucapião (dimensão jurídica) com a certificação e publicidade que emerge do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística). 5. O reconhecimento da usucapião não impede a implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano. Muito ao revés, constitui, em várias hipóteses, o primeiro passo para restabelecer a regularidade da urbanização.   6. Impossível extinguir prematuramente as ações de usucapião relativas aos imóveis situados no Setor Tradicional de Planaltina com fundamento no art. 485, VI, do NCPC em razão de uma suposta ausência de interesse de agir ou falta de condição de procedibilidade da ação.   7. Recurso especial não provido, mantida a tese jurídica fixada no acórdão recorrido: É cabível a aquisição de imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, por usucapião, ainda que pendente o processo de regularização urbanística.   (REsp n. 1.818.564/DF, relator Ministro Moura Ribeiro, Segunda Seção, julgado em 9/6/2021, DJe de 3/8/2021.)   
Destaca-se que o entendimento desta Corte não destoa, conforme se observa do seguinte precedente proferido em situação similar, aliás desta Câmara:

+ Usucapião: qual documento é considerado “justo título”

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SOB O FUNDAMENTO DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE. FRAÇÃO DE ÁREA USUCAPIENDA QUE NÃO POSSUI MATRÍCULA REGISTRAL PRÓPRIA. A AUSÊNCIA DE MATRÍCULA REGISTRAL, POR SI SÓ, NÃO PODE SER ÓBICE PARA A AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE PELA USUCAPIÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.238 DO CÓDIGO CIVIL. EVENTUAL INOBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO (LEI N 6.766/79) NÃO CONSTITUEM EM PRESSUPOSTO PARA AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA PELA VIA DA USUCAPIÃO. TEMA 1025/STJ. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTE TRIBUNAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO QUE SE AFIGURA PREMATURA E CALCADA EM ARGUMENTAÇÃO QUE NÃO PROSPERA. TEORIA DA CAUSA MADURA. INAPLICABILIDADE. NECESSIDADE DE INSTRUÇÃO. PROSSEGUIMENTO DO FEITO NA ORIGEM QUE SE IMPÕE. SENTENÇA CASSADA. HONORÁRIOS RECURSAIS INCABÍVEIS. RECURSO PROVIDO. 1. A inexistência de matrícula registral não pode ser óbice para a aquisição da propriedade pela usucapião, pois esta ação possui em sua essência, justamente, estampar no espelho registral a realidade fática consolidada no tempo, chancelada pela presença de todos os requisitos legais. 2. “Ainda que o imóvel que se pretende usucapir integre loteamento irregular, tal circunstância não impede, per se, o reconhecimento da propriedade se for comprovado o atendimento aos pressupostos legais da usucapião. Admitir-se o contrário seria o mesmo que negar vigência ao instituto e criar requisito não albergado pela norma de regência” (TJSC, Apelação n. 0303832-83.2018.8.24.0004, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 22-11-2022). (TJSC, Apelação n. 0302246-91.2018.8.24.0139, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Silvio Dagoberto Orsatto, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 09-11-2023).
Corroborando o posicionamento:

+ Quando ocorre a perda da posse?

APELAÇÃO CÍVEL. POSSE E PROPRIEDADE. AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. PRELIMINARES ARGUIDAS EM CONTRARRAZÕES. FALTA DE INTERESSE RECURSAL E PRECLUSÃO DA MATÉRIA. ANÁLISE DISPENSADA. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. RESOLUÇÃO FAVORÁVEL. EXEGESE DOS ARTIGOS 4º, 282, § 2º E 488 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. TESES DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE E DE LOTEAMENTO IRREGULAR. REJEIÇÃO. EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA E AUSÊNCIA DE ADEQUADO PARCELAMENTO DO SOLO QUE NÃO IMPEDEM O RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA QUANDO PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGAIS. ENTENDIMENTO FIRMADO NA CORTE SUPERIOR EM JULGAMENTO NA SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS. TEMA 1.025. OCUPAÇÃO CONSOLIDADA. IMPOSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO IMOBILIÁRIA POR OUTROS MEIOS. OBSERVÂNCIA À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, AO DIREITO À MORADIA E À DIGNIDADE HUMANA. PRETENSÃO NÃO RESISTIDA. PRESSUPOSTOS DO ARTIGO 1.240 DO CÓDIGO CIVIL ATENDIDOS. VIABILIDADE E PERTINÊNCIA DA USUCAPIÃO VERIFICADAS. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0300396-52.2016.8.24.0048, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Jairo Fernandes Gonçalves, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 17-10-2023).
Por fim, ainda deste e. Tribunal:

+ Qual a relação entre posse de boa-fé e usucapião?

AÇÃO DE USUCAPIÃO – APELO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO FORMULADO PELOS AUTORES – REJEIÇÃO DO PLEITO DE SOBRESTAMENTO DO PROCESSO ANTE O JULGAMENTO DO RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA REPETITIVA (TEMA Nº 1.025) – INOBSERVÂNCIA DO REGULAR PROCEDIMENTO DE PARCELAMENTO DO SOLO – CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO IMPEDE O RECONHECIMENTO DA PROPRIEDADE PELA POSSE PROLONGADA E SEM OPOSIÇÃO – PREVALÊNCIA DOS POSTULADOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DO DIREITO À MORADIA – ENTENDIMENTO ASSENTE NESTA CORTE E NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES – RECURSO DESPROVIDO. Ainda que o imóvel que se pretende usucapir integre loteamento irregular, tal circunstância não impede, per se, o reconhecimento da propriedade se for comprovado o atendimento aos pressupostos legais da usucapião. Admitir-se o contrário seria o mesmo que negar vigência ao instituto e criar requisito não albergado pela norma de regência. (TJSC, Apelação n. 0303832-83.2018.8.24.0004, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 22-11-2022).
Outrossim, a despeito de a sentença mencionar a possibilidade de manejo de ação de obrigação de fazer, entende-se que a via sugerida acabaria sendo obstada, por exemplo, em razão da Ação Civil Pública n. 0300657-08.2015.8.24.0030, ainda em trâmite, conforme consulta de ofício realizada.

+ Quais os efeitos da posse?

Portanto, ressoa patente que não prosperam os argumentos eleitos pelo juízo natural para extinção do feito sem resolução de mérito, calcado no art. 485 do CPC.
Consigna-se que não se está, nesta ocasião, concedendo à parte autora/recorrente o direito reclamado em juízo, mesmo porque a sentença hostilizada não analisou, no mérito, os demais requisitos, a exemplo da qualidade da posse, (in)viabilidade de soma de posses, etc., de modo que eventual deliberação por este colegiado, sobre tais requisitos, constituiria verdadeira supressão de instância.
O que se está reconhecendo através deste julgamento, portanto, é tão somente que o processo foi abreviado de forma prematura e mediante eleição de argumentação que não prospera, exigindo regular tramitação com a completa citação dos confrontantes, interessados, eventuais réus e das pessoas jurídicas de direito público, além da produção de provas, etc., tudo a fim de se formar sólida e robusta conclusão judicial sobre a temática, ainda que eventualmente seja contrária à pretensão inicial.
Por fim, embora o Ministério Público de Santa Catarina tenha sugerido a intimação do Município de Imbituda para contrarrazoar o apelo (evento 8, DOC1), já que contestou o feito (evento 64, DOC81), entende-se que não há necessidade em tal diligência, em razão do resultado do presente julgamento, e pela ausência de qualquer prejuízo, uma vez que a ação retomará seu curso junto ao juízo natural.

+ Aquisição da posse: modo originário e derivado

De todo modo, é impositiva a cassação da sentença com respectivo retorno do feito à origem, para regular prosseguimento e instrução, porquanto inaplicáveis, por ora, as disposições do art. 1.013, § 3º, I, do Código de Processo Civil, notadamente pelo fato de que sequer houve a completa angularização, já que a pessoa jurídica titular registral, s. m. j., ainda não foi citada, em que pese o autor tenha recolhido as custas para expedição de novo mandado (vide evento 61, DOC77, evento 61, DOC78 e evento 61, DOC79). 
Honorários advocatícios
São incabíveis honorários advocatícios na hipótese de anulação da sentença, com prosseguimento do processo, no primeiro grau, conforme precedente do STJ:
Com a anulação da sentença e a baixa dos autos à origem, com determinação para que se retome sua fase instrutória, não há falar em condenação em honorários advocatícios, haja vista que o processo volta a fase que precede seu julgamento, sendo essa a oportunidade para se fixar a responsabilidade pela sucumbência. Precedentes. (…) não são cabíveis honorários recursais na hipótese de recurso que reconhece ‘error in procedendo’ e que anula a sentença, uma vez que essa providência torna sem efeito também o capítulo decisório referente aos honorários sucumbenciais e estes, por seu turno, constituem pressuposto para a fixação (‘majoração’) do ônus em grau recursal. Exegese do art. 85, § 11, do CPC/2015″ (AREsp 1.050.334/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 28/3/2017, DJe de 3/4/2017). (AgInt no AREsp 1341886/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 27/05/2019, DJe 30/05/2019).
Igualmente, como corolário daquele, não cabem honorários recursais.

+ Emprestei um imóvel e a pessoa não quer mais sair. O que fazer?

Parte Dispositiva
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provimento para cassar a sentença de primeiro grau, determinando-se o retorno dos autos à origem para prosseguimento do feito. Inviável o arbitramento de honorários recursais, nos termos da fundamentação.

Documento eletrônico assinado por SILVIO DAGOBERTO ORSATTO, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4220052v8 e do código CRC 9bf0ba8b.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): SILVIO DAGOBERTO ORSATTOData e Hora: 13/12/2023, às 8:13:39

Apelação Nº 0301872-48.2017.8.24.0030/SC

+ Quem deve ser citado na ação de usucapião?

RELATOR: Desembargador SILVIO DAGOBERTO ORSATTO

APELANTE: FABIANO NUNES DANIEL (AUTOR) APELADO: Juízo da 2ª Vara da Comarca de Imbituba

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SOB O FUNDAMENTO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ÁREA USUCAPIENDA NÃO REGISTRADA INTEGRANTE DE IMÓVEL MATRICULADO E INTEGRANTE DE LOTEAMENTO IRREGULAR. A AUSÊNCIA DE MATRÍCULA REGISTRAL, POR SI SÓ, NÃO PODE SER ÓBICE PARA A AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE PELA USUCAPIÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.238 DO CÓDIGO CIVIL. EVENTUAL INOBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO (LEI N. 6.766/79) NÃO CONSTITUEM ÓBICE PARA AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA PELA VIA DA USUCAPIÃO. TEMA 1025 DO STJ. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTE TRIBUNAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO QUE SE AFIGURA PREMATURA E CALCADA EM ARGUMENTAÇÃO QUE NÃO PROSPERA. TEORIA DA CAUSA MADURA. INAPLICABILIDADE. FALTA DE COMPLETA ANGULARIZAÇÃO PROCESSUAL. PROSSEGUIMENTO DO FEITO NA ORIGEM QUE SE IMPÕE. SENTENÇA CASSADA. HONORÁRIOS RECURSAIS INCABÍVEIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A inexistência de matrícula registral não pode ser óbice para a aquisição da propriedade pela usucapião, pois esta ação possui em sua essência, justamente, estampar no espelho registral a realidade fática consolidada no tempo, chancelada pela presença de todos os requisitos legais.
2. “Ainda que o imóvel que se pretende usucapir integre loteamento irregular, tal circunstância não impede, per se, o reconhecimento da propriedade se for comprovado o atendimento aos pressupostos legais da usucapião. Admitir-se o contrário seria o mesmo que negar vigência ao instituto e criar requisito não albergado pela norma de regência” (TJSC, Apelação n. 0303832-83.2018.8.24.0004, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Roberto Lepper, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 22-11-2022).

+ Quem deve ser citado na ação de usucapião?

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 1ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para cassar a sentença de primeiro grau, determinando-se o retorno dos autos à origem para prosseguimento do feito. Inviável o arbitramento de honorários recursais, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 07 de dezembro de 2023.

Documento eletrônico assinado por SILVIO DAGOBERTO ORSATTO, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4220053v11 e do código CRC 7c8181c7.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): SILVIO DAGOBERTO ORSATTOData e Hora: 13/12/2023, às 8:13:39

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO ORDINÁRIA FÍSICA DE 07/12/2023

Apelação Nº 0301872-48.2017.8.24.0030/SC

RELATOR: Desembargador SILVIO DAGOBERTO ORSATTO

+ Usucapião: requisitos e documentos necessários

PRESIDENTE: Desembargador FLAVIO ANDRE PAZ DE BRUM

PROCURADOR(A): ROGE MACEDO NEVES
APELANTE: FABIANO NUNES DANIEL (AUTOR) ADVOGADO(A): ANA PAULA SONIA DA SILVA (OAB SC031201) APELADO: Juízo da 2ª Vara da Comarca de Imbituba MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Ordinária Física do dia 07/12/2023, na sequência 92, disponibilizada no DJe de 20/11/2023.
Certifico que a 1ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 1ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO PARA CASSAR A SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU, DETERMINANDO-SE O RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO. INVIÁVEL O ARBITRAMENTO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador SILVIO DAGOBERTO ORSATTO
Votante: Desembargador SILVIO DAGOBERTO ORSATTOVotante: Desembargador EDIR JOSIAS SILVEIRA BECKVotante: Desembargador RAULINO JACÓ BRUNING

Fonte: TJSC

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