Usucapião: cessão de direitos sucessórios

Usucapião: cessão de direitos sucessórios.

Processo: 5003547-29.2020.8.24.0030 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Carlos Roberto da Silva
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Sétima Câmara de Direito Civil
Julgado em: 30/11/2023
Classe: Apelação Citações – Art. 927, CPC: Súmulas STJ:7

Apelação Nº 5003547-29.2020.8.24.0030/SC

RELATOR: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVA

APELANTE: JEFERSON FRITSCH (AUTOR)

RELATÓRIO

Jeferson Fritsch interpôs recurso de apelação contra sentença (evento 31 do processo de origem) que, nos autos da ação de usucapião extraordinária, indeferiu a petição inicial, ante a ausência de interesse de agir, e julgou extinto o feito sem resolução de mérito.
Para melhor elucidação da matéria debatida nos autos, adota-se o relatório da sentença recorrida:
JEFERSON FRITSCH ajuizou a presente “ação de usucapião” objetivando a aquisição do título de propriedade do imóvel descrito na exordial. 
Alegou que exerce mansa e pacificamente, sem contestação, a posse do imóvel, embasada em justo título e boa-fé, há mais de 15 anos, possuindo-o com animus domini.
Juntou procuração e documentos (evento 1).
No decorrer do processamento do feito, remetidos os autos ao Ministério Público, este pugnou pela extinção do processo em razão da inviabilidade da pretensão pela via eleita (evento 28).
A parte autora, intimada, manifestou pela procedência do pedido inicial e, ainda, informou que não foi possível aclarar a cadeia possessória do imóvel.
Vieram-me os autos conclusos. 
É, na sua essência, o relatório.
Da parte dispositiva do decisum, extrai-se a síntese do julgamento de primeiro grau:
Ante o exposto, considerando a impossibilidade jurídica do pedido de usucapião porque detém a propriedade do bem em razão de negócio jurídico prévio, JULGO EXTINTO o processo sem resolução de mérito, ex vi do disposto no art. 485, inciso VI, do Código de Processo Civil. 
Custas pela parte autora.
Sem honorários. 
P.R.I.
Notifique-se o Município de Imbituba, conforme requerido pelo “parquet” no parecer último.
Transitada em julgado, dê-se baixa e arquive-se. (Grifos no original).
Em suas razões recursais (evento 43 dos autos originários), a parte autora asseverou que “no que tange à regularidade da cadeia sucessória, tal se extrai de forma clara da inicial e da documentação constante nos autos, o AUTOR adquiriu de Antônio Damion, e juntou declarações de tempo de posse a qual confirmam: QUE O AUTOR SOMADO AOS ANTIGOS POSSUIDORES, PERFAZ LAPSO TEMPORAL SUPERIOR A 20 ANOS, ou seja, cumpre o lapso da usucapião extraordinário” (p. 4).
Aduziu que “O juízo singular entende que a via da usucapião é inadequada, e que deveria ser solicitado adjudicação compulsória, ou obrigação de fazer. Contudo, destacamos que inexiste prévio negócio jurídico entre a parte e os proprietários da matricula, logo, não merece prosperar os fundamentos da sentença, uma vez que não é realidade da presente demanda, pois, o Autor não possuí qualquer relação jurídica com os proprietários da matrícula” (p. 5).
Alegou que “é inegável que o Apelante adquiriu imóvel que está inserido em área maior, contudo, inexiste relação jurídica entre o autor com os proprietários registrais” (p. 5).
Sustentou que “o Apelante comprou de boa-fé, tanto que o contrato que adquiriu o imóvel não mencionou a matricula, bem como está autorizado a regularizar seu imóvel, através da usucapião” (p. 5).
Referiu que “No caso em tela, não se trata de usucapião de terras com animus de alterar o título da posse, mas sim, regularizar a de quem efetivamente exerce a posse, qual seja, o apelante” (p. 6).
Afirmou que “o autor juntamente com o antigo possuidor POSSUI O LAPSO TEMPORAL NECESSÁRIO PARA USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO e FRISA-SE, NÃO POSSUI QUALQUER RELAÇÃO JURÍDICA COM OS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS” (p. 6).
Defendeu que “não possui relação jurídica com os proprietários registrais, este comprou de terceiro, mediante transferência da posse, a qual não foi formalizada escritura pública, bem como adquiriu de boa-fé, exercendo a posse sobre área devidamente delimitada” (p. 10).
Por fim, postulou a reforma da sentença nos tópicos mencionados.
A Procuradoria-Geral de Justiça, por intermédio de parecer do Procurador de Justiça João Fernando Quagliarelli Borrelli, opinou pelo conhecimento e desprovimento do reclamo (evento 5), e os autos vieram conclusos para julgamento.
Este é o relatório.

+ Posso somar o tempo de posse de quem comprei o imóvel para fazer usucapião?

VOTO

Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença que indeferiu a petição inicial, ante a falta de interesse de agir, e extinguiu o feito sem resolução de mérito.
Porque presentes os pressupostos de admissibilidade, o recurso deve ser conhecido. 
Tem-se como fato incontroverso que, em 16-6-2020, o demandante adquiriu o imóvel usucapiendo, por meio de contrato de cessão e transferência de direitos possessórios celebrado com Antônio Damion, representado por um terreno urbano com uma área de 385,52m², localizado na Rua Caminho do Alto do Morro, Ibiraquera, Imbituba, que constitui fração do bem registrado sob a matrícula n. 10.892 no Registro de Imóveis da Comarca de Imbituba.
A controvérsia, portanto, cinge-se em analisar a forma de aquisição da propriedade, se originária ou derivada, a fim de verificar a presença de interesse de agir da parte autora, e sobre tal ponto debruçar-se-á a presente decisão.
Adianta-se, desde já, que o apelo não comporta acolhimento.

+ Aquisição da posse: modo originário e derivado


Porquanto adequados e suficientes ao deslinde da controvérsia nesta instância, para evitar tautologia, adotam-se os fundamentos bem lançados pelo Magistrado João Bastos Nazareno dos Anjos, por ocasião da prolação da sentença, como razões de decidir (evento 31 do processo de origem):
A usucapião é a ação corretamente manejada para obtenção de propriedade por aquisição originária, quando não decorrente de transação imobiliária, ao passo em que a adjudicação compulsória objetiva a regularização da propriedade derivada de negócio jurídico prévio firmado entre as partes (contrato particular, escritura, etc). Se as partes possuem contrato de aquisição, tal qual se afirma e comprova nos autos, a correta ação e pedido para ver regularizada sua propriedade é a ação de adjudicação compulsória e/ou de obrigação de fazer, e não pela via eleita, sendo o novo entendimento adotado por este Juízo. 

+ Usucapião ou adjudicação compulsória?

Neste sentido, a jurisprudência, mutatis mutandis:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA TERMINATIVA. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. IMÓVEL ADQUIRIDO ATRAVÉS DE COMPRA E VENDA PACTUADA COM TERCEIRO QUE COMPROU FRAÇÃO DO IMÓVEL DIRETAMENTE DO PROPRIETÁRIO REGISTRAL. DEMANDA AJUIZADA COM O INTENTO DE REGULARIZAR O REGISTRO DO IMÓVEL. VIA ELEITA INADEQUADA. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. RECLAMADA A IMPOSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. IRRELEVÂNCIA. POSSIBILIDADE DE INGRESSO DE AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS DESCABIDA ANTE A AUSÊNCIA DE CITAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. A usucapião é o exemplo clássico de aquisição originária da propriedade, que pressupõe a inexistência de uma transação ou alienação da coisa por um antigo proprietário, e também apaga os ônus que acompanham a coisa. 2. […] “uma vez que evidenciada a existência de título apto à transferência da propriedade mediante a realização de procedimento administrativo de desmembramento, fica evidenciada a inadequação da via eleita que importa em ausência de interesse de agir e em consequente extinção do feito por ausência de condição da ação”. […] (TJSC, Apelação Cível n. 2015.087491-3, de Ascurra, rel. Des. Gilberto Gomes de Oliveira, com votos vencedores do Des. Fernando Carioni e deste Relator. 12-04-2016) (TJSC, Apelação Cível n. 0008000-23.2013.8.24.0023, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 10-12-2019). 
Nessa linha, ainda:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO COMINATÓRIA. PRETENSÃO AUTORAL CONSISTENTE EM OBRIGAR A RÉ A TRANSFERIR A PROPRIEDADE REGISTRAL DE BEM IMÓVEL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.” (Apelação Cível n. 2014.062331-3, rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, j. Em 24-11-2014). 
AÇÃO DE USUCAPIÃO ORDINÁRIO. PRELIMINAR DE NEGATIVA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL AFASTADA. PRESENÇA DE JUSTO TÍTULO. AUTORES QUE ADQUIRIRAM IMÓVEL ATRAVÉS DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. ALIENANTE QUE AO TER ADQUIRIDO O BEM NÃO REALIZOU A TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE. EXISTÊNCIA DE MATRÍCULA DE IMÓVEL EM NOME DO ANTIGO PROPRIETÁRIO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.  Havendo registro imobiliário em nome do antigo proprietário do imóvel, é juridicamente impossível o pleito de usucapião, posto que entender diferente, seria admitir, por meios transversos, que a parte adquirisse a propriedade do bem por meio do registro imobiliário sem para tanto pagar os tributos devidos (TJSC, Apelação Cível n. 2012.065408-2, de Gaspar, rel. Des. Saul Steil, julg. Pela 3ª Câmara de Direito Civil, em 13-11-2012). (grifou-se)
Efetivamente, segundo a inicial, a autora detém a posse mansa, pacífica e com animus domini do bem imóvel que pretende usucapir em razão de tê-lo adquirido de Antonio Damion, em 16-6-2020 (documento 5 do evento 1). Todavia, ao que parece, a segunda página do contrato não foi incluída no processo. 
Verifica-se, ainda, de acordo com a Certidão do Cartório de Registro de Imóveis, o imóvel usucapiendo está localizado dentro da matrícula n. 10.892 daquela serventia (documento 16 do evento 1). O imóvel matrícula n. 10.892 tem como proprietários registrais Jovino Domingos e Maria Pereira Domingos (documento 3 do evento 9).
Conforme destacou a representante do Ministério Público, acerca da cadeia possessória do imóvel: 
“Intimado o requerente para que apresentasse cópia integral do contrato celebrado, mais uma vez, apresentou o mesmo documento em anexo a inicial (evento 01, documento 05) e é fácil perceber que o instrumento particular de compra e venda novamente apresentado no evento 19, documento 2 também não está completo, pois a última frase da primeira folha do documento se conclui “perfazendo uma área total”, enquanto a segunda folha já apresenta dados da conta bancária do vendedor Antonio Damion. 
Outrossim, de acordo com a Certidão do Cartório de Registro de Imóveis, o imóvel usucapiendo está localizado dentro da matrícula n. 10.892 daquela serventia (documento 16 do evento 1). 
O imóvel matrícula n. 10.892 tem como proprietários registrais Jovino Domingos e Maria Pereira Domingos (documento 3 do evento 9). 
Por consectário lógico, de modo a se constatar a adequação da via eleita, na manifestação Ministerial do evento 14, este Órgão de Execução requereu que a parte autora acostasse ao feito o contrato celebrado entre Antonio Damion e o(s) antecessor(es) dele(s) ou, em caso de alegação de inexistência de contrato anterior, juntasse ao feito declaração assinada por ele com firma reconhecida em cartório e as advertências acerca do crime de falsidade ideológica (art. 299, CP), informando se adquiriu ou não o imóvel de Jovino Domingos e Maria Pereira Domingos. 
Na petição do evento 24, o requerente aduziu não ter mais contato com o antigo possuidor nem possuir o contrato celebrado com aquele e o antecessor.
Disse que, embora seja imóvel oriundo de área maior registrada, adquiriu-o de boa-fé e por justo título e com exercício de posse mansa e pacífica, razão pela qual pretender ser alçado à condição de proprietário do imóvel. 
Defendeu, por fim, não poder ser cerceado da declaração de domínio do imóvel usucapiendo, não havendo qualquer impeditivo legal expresso quanto a usucapir áreas matriculadas, mormente quando o possuidor não manteve qualquer relação negocial com os titulares da matrícula. 
Ocorre que a desídia da parte autora, sobretudo por conta de juntar o contrato pela segunda vez consecutiva sem a segunda página suprimida, bem como defender não possuir mais contato com o posseiro anterior, ainda que o imóvel usucapiendo tenha sido adquirido recentemente, ainda no ano 2020, leva a crer que o requerente não deseja aclarar a cadeia possessória. 
Não é demais destacar que, conforme art. 13, §2ª, do Provimento n. 65/2017 do CNJ, cabe à parte justificar “o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.” 
Aliás, o imóvel é proveniente de área maior registrada, fator que leva a crer ser possivelmente oriunda loteamento clandestino.”.
Tal circunstância, portanto, evidencia que a propriedade da autora sobre o bem não é originária, mas derivada de transmissão imobiliária.
Sabe-se que em havendo registro imobiliário em nome do antigo proprietário do imóvel, como é o caso dos autos, é juridicamente impossível o pleito de usucapião, pois, entender diferente, seria admitir, por meios transversos, que a parte adquirisse a propriedade do bem por meio do registro imobiliário sem para tanto pagar os tributos devidos. 
Para finalizar, guardadas as proporções, veja-se este precedente do STJ:
AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. USUCAPIÃO. REQUISITOS. AUSÊNCIA. IMÓVEL FINANCIADO PELO SFH. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. ART. 485, INCISO V, DO CPC/1973. VIOLAÇÃO FRONTAL E DIRETA. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte. 2. A reforma do julgado demandaria o reexame do contexto fático-probatório, procedimento vedado na estreita via do recurso especial, a teor da Súmula nº 7/STJ. 3. Segundo a jurisprudência desta Corte, a posse decorrente de contrato de promessa de compra e venda de imóvel por ser incompatível com o animus domini, em regra, não ampara a pretensão à aquisição por usucapião. 4. A viabilidade da ação rescisória por ofensa de literal disposição de lei pressupõe violação frontal e direta contra a literalidade da norma jurídica, sendo inviável, nessa seara, a reapreciação das provas produzidas ou a análise acerca da correção da interpretação dessas provas pelo acórdão rescindendo. 5. Agravo interno não provido.” (STJ; AgInt no REsp 1520297/RS; Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva; 23/08/2016)
Assim, o manejo da presente ação não é a via adequada à satisfação da pretensão posta em juízo, pois além de conhecida toda a cadeia sucessória do bem, este encontra-se matriculado, possibilitando o aforamento de ação de adjudicação compulsória e/ou de obrigação de fazer.
De outra banda, relembra-se que na usucapião a discussão gira em torno da propriedade não decorrente de negócio jurídico prévio e jamais servirá como desentrave ou supressão de etapas administrativas ou dispensa de exigências legais e ambientais, seja para o registro ou para o parcelamento do solo (urbano ou rural). 
Inclusive, isso também ocorre para o caso de supressão ou superação da eventual (des)necessidade de desmembramento da área que se pretende usucapir, pois “a ação de usucapião não é a via processual adequada para o proprietário obter o desmembramento do imóvel com a abertura de matrícula exclusivamente quanto à parte a ele relacionada” (AC 0059240-22.2011.8.24.0023, Rel. Des. Newton Trisotto, j. em 12/12/2016.). 

+ Promessa de compra e venda e escritura do imóvel


E com a devida vênia aos entendimentos em contrário, tanto a usucapião quanto a adjudicação compulsória, cada qual com seus requisitos, serve apenas para conceder ao(s) requerente(s) o título aquisitivo da propriedade do bem imóvel discutido, cujo registro deve ser providenciado junto a matrícula (art. 167, I, item 28, da Lei 6.015/73).
Anoto também que eventual espontaneidade para o recolhimento de eventuais tributos (em especial o ITBI) não é argumento e tampouco serve para suprir a irregularidade procedimental, pois se cuidam de questões materiais e de procedimentos distintos.
Portanto, mostrando-se inadequada e juridicamente impossível a presente ação em razão da existência de prévio negócio jurídico entre as partes.
Em suma, para regularização de sua situação, cabe à parte autora pleitear a competente adjudicação compulsória do bem ou ação de obrigação de fazer e depois, de posse da eventual sentença transitada em julgado, buscar junto ao Registro de Imóveis sua averbação, quitação dos créditos tributários devidos e resolvendo as pendências necessárias e exigidas administrativamente e legalmente, inerentes às espécies. 
Ante o exposto, considerando a impossibilidade jurídica do pedido de usucapião porque detém a propriedade do bem em razão de negócio jurídico prévio, JULGO EXTINTO o processo sem resolução de mérito, ex vi do disposto no art. 485, inciso VI, do Código de Processo Civil. (Grifos no original).
Como é sabido, a prescrição aquisitiva configura forma originária para a aquisição de propriedade, modalidade em que, consoante lição doutrinária, “não há vínculo entre a propriedade atual e a anterior, incorporando-se o bem ao patrimônio do novo titular em toda sua plenitude, livre de todos os vícios que a relação jurídica pregressa apresentava” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais, 13ª ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017, p. 395).
No mesmo rumo, ensina Sílvio de Salvo Venosa:
[…] Para a corrente dominante, a qual corretamente leva em conta as consequências jurídicas dessa categoria jurídica, é originária toda aquisição que não guarda qualquer relação com titulares precedentes, ainda que estes possam ter efetivamente existido.
Caso típico de aquisição originária é o (a) usucapião. Este Código trata do instituto como substantivo feminino, o que melhor se prende à origem histórica do vocábulo. O bem usucapido pode ter pertencido a outrem, mas o usucapiente dele não recebe a coisa. Seu direito de aquisição não decorre do antigo proprietário. Na aquisição originária, o único elemento que para ela concorre é o próprio fato ou ato jurídico que lhe dá nascimento.
Ocorre aquisição derivada quando há relação jurídica com o antecessor. Existe transmissão da propriedade de um sujeito a outro. […] A aquisição por direito hereditário, a derivada de contrato e a tradição são exemplos de modalidades derivadas de aquisição (Código civil interpretado, 3ª ed. São Paulo, Atlas, 2013, p. 1451). 
A propósito, deste relator:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.TESE DE AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR DOS AUTORES. ACOLHIMENTO. BEM ADQUIRIDO POR CONTRATO DE COMPRA E VENDA FIRMADO COM O PROPRIETÁRIO REGISTRAL DO IMÓVEL. CARACTERIZADA A HIPÓTESE DE AQUISIÇÃO NA MODALIDADE DERIVADA. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO DIRETO E IMEDIATO ENTRE O TITULAR REGISTRAL E OS USUCAPIENTES. INVIABILIDADE DE TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE POR MEIO DA DEMANDA PROPOSTA. NECESSIDADE DE SE OBTER A TRANSFERÊNCIA DE DOMÍNIO NA VIA ADMINISTRATIVA OU EM AÇÃO PRÓPRIA. RISCO DE SUPRESSÃO INDEVIDA DO RESPECTIVO TRIBUTO E DE EVENTUAL DESATENDIMENTO ÀS NORMAS URBANÍSTICAS MUNICIPAIS. SENTENÇA REFORMADA.”Se a propriedade é adquirida por modo originário, não há vínculo entre a propriedade atual e a anterior, incorporando-se o bem ao patrimônio do novo titular em toda sua plenitude, livre de todos os vícios que a relação jurídica pregressa apresentava. Todavia, se adquirida da propriedade por modo derivado, isto é, pelo registro no ofício imobiliário do título representativo do negócio jurídico ou sucessão, transfere-se a coisa com os mesmos atributos e restrições (ônus reais e gravames) que possuía no patrimônio do transmitente.” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais, 13ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017. p. 395).RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.(TJSC, Apelação n. 0302857-27.2016.8.24.0038, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 23-09-2021).
E também desta Corte de Justiça:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – PROPRIEDADE – USUCAPIÃO ORDINÁRIA – SENTENÇA QUE RECONHECEU A INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – EXTINÇÃO TERMINATIVA DO PROCESSO EM 1º GRAU – RECURSO DOS AUTORES – ALEGADA FALTA DE ÓBICE LEGAL À USUCAPIÃO – INACOLHIMENTO – OCORRÊNCIA DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE – AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL E DE ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – BURLA AO RECOLHIMENTO DE TRIBUTOS E AO PROCEDIMENTO DE DESMEMBRAMENTO- EXIGIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA NECESSIDADE DE MANEJO DA VIA AD USUCAPIONEM, SOB PENA DE FOMENTAR A SUBVERSÃO DA ORDEM PROCESSUAL E DOS PROCEDIMENTOS LEGAIS DE TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE – SENTENÇA TERMINATIVA MANTIDA – APELO IMPROVIDO.A ação de usucapião é via inadequada para regularizar transmissão da propriedade adquirida por derivação do proprietário anterior, tal como por contrato de compra e venda, doação ou mesmo causa mortis, mormente porque acarretaria burla ao recolhimento de tributos de transmissão (ITBI, ITCMD e causa mortis) e eventualmente ao procedimento de prévio desmembramento do imóvel. (TJSC, Apelação n. 0001733-74.2009.8.24.0023, rel. Monteiro Rocha, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 19-05-2022).
Volvendo ao caso concreto, observa-se que o imóvel sub judice foi adquirido pelo autor Jeferson Fritsch por meio de “contrato particular de cessão e transferência de direitos de posse” firmado com Antônio Damion, em 16-6-2020 (evento 1, CONTR5, da origem).
Ainda, constata-se que, conforme bem pontuado pelo Parquet, “a aquisição da propriedade decorre de sucessivos contratos de compra e venda envolvendo os proprietários registrais” (evento 11).
Nesse cenário, restou caracterizada a hipótese de aquisição derivada da propriedade, de modo que é forçoso reconhecer a ausência de interesse de agir do demandante por inadequação da via eleita.
Por oportuno, extrai-se o seguinte excerto do parecer do Procurador de Justiça, que caminha no mesmo rumo do posicionamento aqui adotado (evento 11):
A usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade, pela posse qualificada e prolongada no tempo, pois é despida de vínculo com o titular anterior, ou seja, não existe a transmissão de uma pessoa para a outra. Assim, na ação de usucapião se objetiva a declaração de domínio sobre imóvel que não lhe pertence. 
Na aquisição derivada, por sua vez, a propriedade é obtida por meio do negócio jurídico, em que pactuado a transferência ao novo titular. 
In casu, o apelante objetiva a declaração do domínio sobre uma área de 385,52 m², situada na rua Caminho do Alto do Morro, bairro Ibiraquera, na cidade de Imbituba/SC, matriculado sob o n. 10.892, junto ao Registro de Imóveis da Comarca de Imbituba, cujos proprietários registrais são Jovino Domingues e Maria Pereira Domingues. 
Infere-se do caderno processual originário que a área foi adquirida pelo autor por meio negócio jurídico realizado com seu antecessor Antônio Damion, conforme instrumento particular carreado (ev. 1, CONTR5, origem). Ao analisar o feito, o Parquet requereu a intimação da parte autora para apresentar: a) cópia integral do contrato de compra e venda celebrado entre ele e seu antecessor, pois ausente a segunda página do documento e b) cópia do contrato celebrado entre Antônio Damion e seu (s) antecessor (es) ou, em caso de alegação de inexistência de contrato anterior, declaração assinada por Antônio com firma reconhecida em cartório e as advertências acerca do crime de falsidade ideológica (art. 299, CP), informando se adquiriu ou não o imóvel de Jovino Domingos e Maria Pereira Domingos (ev. 14, origem). Contudo, a diligência não foi cumprida pelo apelante sob o argumento de que não possui contato com o seu antecessor, bem como anexou novamente o instrumento particular incompleto (ev. 19-24, origem), presumindo-se, portanto, que não deseja declarar a cadeia possessória da gleba, pois a aquisição da propriedade decorre de sucessivos contratos de compra e venda envolvendo os proprietários registrais.
Não bastasse, verifica-se que a área pretendida, de 385,52 m², está inserida em uma área maior, que contém 56.892,36 m². Sendo assim, fácil perceber que o imóvel usucapiendo constitui uma divisão material de área, deixando evidente que o autor da ação, ora recorrente, busca com a presente demanda obter na via judicial uma forma de compelir o Ofício de Registro de Imóveis a realizar desmembramento e consequente registro individual da área usucapienda, prática que se mostra inadequada, porquanto sem a observância das exigências previstas na Lei n. 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano).
Nesse sentido, colhe-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo: 
USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – Ação julgada procedente – CONTRATO PARTICULAR DE COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA DE PARTE IDEAL DE IMÓVEL, MATRÍCULA DE ÁREA MAIOR – Alegação de não recebimento de escritura pública de venda e compra, através de cartório extrajudicial, por se cuidar de área remanescente de parte ideal, ou registro na matrícula, em virtude de regulamento proibitivo, quando a matrícula possui várias alienações de partes ideais – Alegação de posse mansa, pacífica e de justo título há mais de quinze anos – Pretensão de abertura de matrícula através da ação de usucapião – VIA PROCESSUAL INADEQUADA – Caracterização de Loteamento irregular sem parcelamento de solo urbano – Lei de Registros Públicos que não permite registro de sentença declaratória de usucapião sem regularidade do parcelamento do solo – ESTATUTO DA CIDADE – Obrigação Constitucional e legal de estruturação, execução de planejamento a fim de atender as exigências do plano diretor, visando a ordenação da cidade como política de desenvolvimento e expansão urbana para posterior obtenção de matrícula perante o Registro de Imóveis – Precedentes – Interesse jurídico dos alienantes compromissários cedentes, que não compuseram o polo passivo – Notícia de falecimento – Supostos sucessores denominados cedentes – Menor qualificada como impúbere – Pessoa absolutamente incapaz – Não manifestação/autorização de alienação de imóvel através do Ministério Público – Nulidade insanável – Aplicação do artigo 198, I, do Código Civil, prazo de prescrição que não corre contra incapaz – Inexistência de prazo aquisitivo de usucapião extraordinário – Reforma da sentença – Improcedência da ação – Recurso provido.  
(TJSP;  Apelação Cível 4004530-22.2013.8.26.0099; Relator (a): Maria Salete Corrêa Dias; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bragança Paulista – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/07/2019; Data de Registro: 12/07/2019) (grifou-se) 
Desse modo, forçoso concluir que a sentença deve ser confirmada pelos próprios fundamentos. (Grifos no original).

+ Aquisição da posse: modo originário e derivado


Dessarte, não sendo a usucapião a via adequada para regularizar a transmissão de propriedade de imóvel, deve ser mantida a sentença que extinguiu o processo sem resolução de mérito.
Por derradeiro, registra-se que no caso presente, não obstante o recurso ter sido desprovido, incabível a fixação de honorários recursais em desfavor da parte apelante, uma vez que a verba não foi arbitrada em primeira instância. Isso porque “Somente se admite a aplicação de honorários recursais nos casos em que é cabível a fixação de tal verba desde a origem” (STJ, Embargos de Declaração no Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.573.573/RJ, rel. Min. Marco Aurélio Bellize, j. 4-4-2017).
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e negar-lhe provimento, conforme fundamentação.

Documento eletrônico assinado por CARLOS ROBERTO DA SILVA, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4098884v50 e do código CRC 412edbaf.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): CARLOS ROBERTO DA SILVAData e Hora: 14/12/2023, às 18:10:9

Apelação Nº 5003547-29.2020.8.24.0030/SC

RELATOR: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVA

APELANTE: JEFERSON FRITSCH (AUTOR)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL E EXTINÇÃO DO FEITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR.
INSURGÊNCIA DA PARTE AUTORA.
USUCAPIÃO DE IMÓVEL URBANO. BEM USUCAPIENDO ADQUIRIDO POR MEIO DE CONTRATO PARTICULAR DE CESSÃO DE DIREITOS POSSESSÓRIOS.
TESE DE EXISTÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. REJEIÇÃO. AUTOR QUE ADQUIRIU O IMÓVEL USUCAPIENDO POR INTERMÉDIO DE CONTRATO PARTICULAR DE CESSÃO E TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS POSSESSÓRIOS. AQUISIÇÃO DE BEM DECORRENTE DE SUCESSIVOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA CELEBRADOS DIRETAMENTE COM OS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS. HIPÓTESE DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE CARACTERIZADA. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO ENTRE OS TITULARES REGISTRAIS E O USUCAPIENTE. INVIABILIDADE DE TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE POR MEIO DE AÇÃO DE USUCAPIÃO. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR EVIDENCIADO.
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 7ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e negar-lhe provimento, conforme fundamentação, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 30 de novembro de 2023.

Documento eletrônico assinado por CARLOS ROBERTO DA SILVA, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4098885v3 e do código CRC 15fd59a7.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): CARLOS ROBERTO DA SILVAData e Hora: 14/12/2023, às 18:10:9

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 30/11/2023

Apelação Nº 5003547-29.2020.8.24.0030/SC

RELATOR: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVA

PRESIDENTE: Desembargador OSMAR NUNES JÚNIOR

PROCURADOR(A): IVENS JOSE THIVES DE CARVALHO
APELANTE: JEFERSON FRITSCH (AUTOR) ADVOGADO(A): NORMELIA SOUZA DA COSTA (OAB SC032313) MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (MP)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 30/11/2023, na sequência 259, disponibilizada no DJe de 13/11/2023.
Certifico que a 7ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 7ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E NEGAR-LHE PROVIMENTO, CONFORME FUNDAMENTAÇÃO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVA
Votante: Desembargador CARLOS ROBERTO DA SILVAVotante: Desembargador OSMAR NUNES JÚNIORVotante: Desembargador ÁLVARO LUIZ PEREIRA DE ANDRADE
TIAGO PINHEIROSecretário

Fonte: TJSC

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