Trespasse e cessão de quotas sociais

Trespasse e cessão de quotas sociais. O trespasse não se confunde com a cessão de quotas sociais de sociedade limitada ou a alienação de controle de sociedade anônima

Processo: 5000313-54.2022.8.24.0067 (Decisão Monocrática do Tribunal de Justiça)
Relator: Torres Marques
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Comercial
Julgado em: 04/09/2023
Classe: Apelação

Apelação Nº 5000313-54.2022.8.24.0067/SC

APELANTE: ROMA INDUSTRIA E COMERCIO DE CARROCERIAS METALICAS LTDA (RÉU) APELADO: PPL ESTRUTURAS METALICAS E PRE MOLDADOS LTDA (AUTOR)

DESPACHO/DECISÃO

ROMA INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE CARROCERIAS METÁLICAS LTDA. interpôs recurso de apelação em face da sentença proferida nos autos da ação de cobrança n. 5000313-54.2022.8.24.0067, ajuizada por PPL ESTRUTURAS METÁLICAS E PRÉ MOLDADOS LTDA., nos seguintes termos:
Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido formulado na petição inicial, resolvendo o processo com análise do mérito, na forma do art. 487, I, do Código de Processo Civil, para CONDENAR a requerida ao pagamento do valor original de R$ 5.841,68 (cinco mil oitocentos e quarenta e um reais e sessenta e oito centavos), acrescido de correção monetária pelo INPC desde a data do vencimento de cada boleto e juros de mora desde a citação quando deverá incidir a taxa SELIC, a qual abrange juros e correção monetária.
Condeno o réu ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, fixados em 10% (dez por cento) do valor da condenação, tendo em vista a singeleza da demanda e inexistência de dilação probatória (CPC, art. 85, § 2°, I a IV).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos. (ev. 74, eproc1).
Os embargos de declaração opostos (ev. 80, eproc1) foram rejeitados (ev. 87, eproc1).
Alegou a apelante, em síntese, que: a) “houve a venda da referida empresa”, o que configura trespasse, de modo que “não é devedora da dívida ora cobrada, porquanto fora contraída pela antiga sócia e não foi contabilizada”, razão pela qual a “responsabilidade pelo pagamento dos valores cobrados nesta demanda recai única e exclusivamente sobre a antiga sócia da empresa ROMA, qual seja, MYLENA BARTH PUTT”; e, b) “há de ser considerada a má-fé da antiga sócia proprietária da empresa que deixou de informar (quiçá propositalmente) que existiam mais dívidas além daquelas mencionadas e pior, deixou de contabilizar os débitos/títulos cobrados nesta lide”. Requereu, diante disso, o prequestionamento da matéria e o provimento do recurso para reformar a sentença recorrida (ev. 97, eproc1).
Apresentadas as contrarrazões (evs. 102, eproc1), os autos ascenderam a este Tribunal de Justiça, posteriormente redistribuídos em razão da matéria (ev. 10).
É o relatório. Passo a decidir.
Trata-se de recurso de apelação interposto por ROMA INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE CARROCERIAS METÁLICAS LTDA. em face da sentença proferida nos autos da ação de cobrança ajuizada por PPL ESTRUTURAS METÁLICAS E PRÉ MOLDADOS LTDA.
A apelante defende que, em momento posterior à obrigação aqui reclamada, sobreveio a alienação da empresa apelante, com transferência integral de cotas, onerosamente, de modo a incidir o trespasse. Todavia, da análise do contrato social acostado aos autos (ev. 58, contrato social 2, eproc1), infere-se que, em verdade, ocorreu, tão somente, alteração do respectivo quadro societário, e não o mencionado ato jurídico.
Explico. In casu, muito embora tenha ocorrido efetiva alteração dos sócios-cotistas da empresa, restou preservada a titularidade do estabelecimento comercial, o qual, tanto quanto antes, manteve-se pertencente à própria sociedade empresária apelante, razão pela qual continua esta responsável pelas dívidas contraídas em seu nome.
A propósito, para elucidar o tema, o doutrinador Fábio Ulhoa Coelho apresenta, inclusive a título exemplificativo, as distinções entre os institutos do trespasse e cessão de quotas sociais, in verbis:
O trespasse não se confunde com a cessão de quotas sociais de sociedade limitada ou a alienação de controle de sociedade anônima. São institutos jurídicos bastante distintos, embora com efeitos econômicos idênticos, na medida em que são meios de transferência da empresa. No trespasse, o estabelecimento empresarial deixa de integrar o patrimônio de um empresário (o alienante) e passa para o de outro (o adquirente). O objeto da venda é o complexo de bens corpóreos e incorpóreos, envolvidos com a exploração de uma atividade empresarial. Já na cessão de quotas sociais de sociedade limitada ou na alienação de controle de sociedade anônima, o estabelecimento empresarial não muda de titular. Tanto antes como após a transação, ele pertencia e continua a pertencer à sociedade empresária. Essa, contudo, tem a sua composição de sócios alterada. Na cessão de quotas ou alienação de controle, o objeto da venda é a participação societária. As repercussões da distinção jurídica são significativas, em especial no que diz respeito à sucessão empresarial, que pode ou não existir no trespasse, mas não existe na transferência de participação societária. 
Exemplifique-se: se Antonio e Benedito pretendem se tornar os titulares da empresa hoje explorada pela sociedade Bandeirantes Ltda., de que são sócios Carlos e Darcy, há dois caminhos possíveis. O primeiro é a constituição de uma sociedade entre eles (suponha-se, Primavera Ltda.), que adquire o estabelecimento empresarial da Bandeirantes Ltda. Nessa hipótese, o contrato entre as duas sociedades é o trespasse, e será cabível discutir se a adquirente tornou-se, ou não, sucessora da alienante (isto é, se os credores da Bandeirantes Ltda. poderão, ou não, exercer seus direitos contra a Primavera Ltda.). No segundo caminho, Antonio adquire as quotas de Carlos e Benedito, as de Darcy. Não se verifica o trespasse: o estabelecimento empresarial, pertencente à Bandeirantes Ltda. continua da propriedade da mesma pessoa jurídica. O que se negocia, nessa hipótese, não é o estabelecimento, mas as quotas representativas do capital da sociedade empresária. Aqui, a questão da sucessão não se põe, porque os credores da Bandeirantes Ltda. continuam titulares de seus créditos perante essa pessoa jurídica, independentemente de quem sejam os seus sócios. (in Curso de direito comercial, v. 1 : direito de empresa. 16. ed. São Paulo : Saraiva, 2012, p. 202/203)
Nessa perspectiva, independentemente de quem sejam seus sócios, a pessoa jurídica continua a ser titular de seus créditos e débitos, como bem destacou o magistrado de origem, cuja sentença se mantém hígida por seus próprios termos e passa a integrar a presente prestação jurisdicional:
Destaca-se que a cessão de quotas do antigo sócio ao atual representante da empresa, RONEI ADELAR ROSIN, não tem o condão de eximir a empresa pelo pagamento – mesmo que supostamente não contabilizadas quando da transação-, visto que a dívida em comento está em nome da pessoa jurídica, a qual permanece em atividade.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já se posicionou:
APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. NOTAS PROMISSÓRIAS. IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. CONJUNTO PROBATÓRIO APTO A EMBASAR O JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. ILEGITIMIDADE PASSIVA. CESSÃO DE COTAS DE SOCIEDADE. NÃO OCORRÊNCIA DE TRESPASSE. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 1.146 DO CÓDIGO CIVIL PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIDADE POR TODAS AS OBRIGAÇÕES CONTRAÍDAS EM SEU NOME. “Diferentemente do que acontece no trespasse, no qual o estabelecimento empresarial é transferido e pode-se discutir se a empresa adquirente tornou-se sucessora ou não da adquirida, na cessão de quotas o estabelecimento empresarial continua a pertencer à pessoa jurídica, sendo negociado, apenas, as quotas representativas do capital da sociedade empresária e não o estabelecimento, permanecendo, pois, titular de seus créditos e débitos, independentemente de quem sejam os seus sócios.” (TJSC, Apelação Cível n. 2001.002371-2, de Blumenau, rel. Des. Torres Marques).   RESPONSABILIDADE PESSOAL DO EX-SÓCIO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE ABUSO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. NECESSIDADE DE PROVA CABAL NESSE SENTIDO. EXEQUENTE QUE TEM DIREITO AO SEU CRÉDITO, INDEPENDENTEMENTE DA MUDANÇA SOCIETÁRIA DA EMPRESA EXECUTADA. DEMONSTRAÇÃO DA CAUSA DEBENDI. PRESCINDIBILIDADE, NO CASO EM CONCRETO. TÍTULOS REGULARES E SEM INDICATIVO DE ILICITUDE. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA CARTULARIDADE, LITERALIDADE E AUTONOMIA.   SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 2013.019403-9, de Maravilha, rel. Eduardo Mattos Gallo Júnior, Câmara Especial Regional de Chapecó, j. 24-06-2013).
Dessa forma, a empresa requerida deve ser condenada ao pagamento dos valores cobrados na presente demanda.
Destaco que a reprodução da sentença recorrida decorre da sua correta e integral análise fática, com profundidade e exata compreensão dos fatos e aplicação do direito, realidade insuscetível de configurar qualquer irregularidade nesta etapa processual:
[…] III – O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal admitem a motivação per relationem, pela qual se utiliza a transcrição de trechos dos fundamentos já utilizados no âmbito do processo, o que não se caracteriza como ausência de fundamentação, não caracterizada, assim, a alegada violação dos arts. 489 e 1.013 do CPC/2015. (AREsp 1.540.871/RS, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/6/2021).
[…] 1. Na forma da jurisprudência desta Corte, é possível que, nas decisões judiciais, seja utilizada a técnica de fundamentação referencial ou per relationem. (AgInt no REsp 1.706.644/CE, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 24/5/2021).
[…] 3. Nos termos da jurisprudência desta Corte, é admitido ao Tribunal de origem, no julgamento da apelação, utilizar, como razões de decidir, os fundamentos delineados na sentença (fundamentação per relationem), medida que não implica negativa de prestação jurisdicional, não gerando nulidade do acórdão, seja por inexistência de omissão seja por não caracterizar deficiência na fundamentação. (AgInt no AREsp 1.779.343/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/4/2021).
Logo, razão não assiste à apelante.
Ademais, quanto à alegação de má-fé, ante a natureza da presente demanda, não se mostra cabível a análise de tal pleito, visto que em nada afetaria o mérito da lide, sendo certo que eventual discussão sobre essa matéria deverá ser objeto de ação autônoma.
A esse respeito, mutatis mutandis, extraio a jurisprudência desta Corte:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. DECISÃO QUE INDEFERIU A DENUNCIAÇÃO DA LIDE. INSURGÊNCIA DA PARTE RÉ. PRETENSÃO DE ATRIBUIR PARCELA DE RESPONSABILIDADE À TERCEIRA EMPRESA PELO ATRASO NA DEVOLUÇÃO DE CONTÊINER. A DENUNCIAÇÃO DA LIDE SOMENTE É OBRIGATÓRIA QUANDO RESULTAR NA PERDA DO DIREITO DE REGRESSO. IN CASU, DESNECESSÁRIA, NOTADAMENTE POR FORMAR LIDE PARALELA, COM DILAÇÃO PROBATÓRIA. EVENTUAL DIREITO DE REGRESSO PODE SER BUSCADO EM AÇÃO AUTÔNOMA. EXEGESE DO ART. 125 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PRECEDENTES. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento n. 5015406-30.2023.8.24.0000, rel. Osmar Mohr, Sexta Câmara de Direito Comercial, j. 15-6-2023).
Não bastasse, o aludido pleito não foi sequer submetido à apreciação do juízo de origem, visto que não deduzido em sede de contestação, de maneira que resta configurada inovação recursal, motivo pelo qual não conheço da insurgência nesse ponto, em respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição.
Destarte, mantenho a sentença recorrida, pois em consonância com o posicionamento adotado por este Tribunal.
Por fim, desnecessário o prequestionamento explícito de toda a legislação aplicável ao caso em questão, uma vez que o debate jurídico das teses sustentadas, no corpo do decisum, é suficiente para autorizar a rediscussão a respeito do tema na via recursal própria.
Dispositivo
Ante o exposto, com fundamento no art. 932, III e IV, do CPC, e art. 132, XIV e XV, do RITJSC, conheço em parte do recurso e nego-lhe provimento.
Custas de lei.
Porque preenchidos os requisitos legais (§§ 2º e 11 do art. 85 do CPC), fixo os honorários recursais em 5% sobre o valor da condenação, percentual a ser acrescido ao montante estabelecido na origem sobre a mesma base de cálculo
Publique-se. Intimem-se.

Documento eletrônico assinado por TORRES MARQUES, Desembargador, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 3902458v26 e do código CRC 564db8fb.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): TORRES MARQUESData e Hora: 4/9/2023, às 8:47:10

Fonte: TJSC

Imagem Freepik

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