Usucapião: comodato verbal

Tais condutas são incompatíveis com a intenção de doar. Ora, se o apelante realmente tivesse doado a propriedade do imóvel a Tânia, com quem, a partir do que se extrai dos autos, não tinha qualquer proximidade/relação de amizade, por qual razão permaneceria realizando pagamentos destinados à manutenção do bem e sua melhoria?

Processo: 5025121-50.2021.8.24.0038 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Eduardo Gallo Jr.
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Sexta Câmara de Direito Civil
Julgado em: 19/12/2023
Classe: Apelação

Apelação Nº 5025121-50.2021.8.24.0038/SC

RELATOR: Desembargador EDUARDO GALLO JR.

APELANTE: EDVALDO SANTANA (AUTOR) APELADO: FERNANDA DE OLIVEIRA (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Cível interposta por EDVALDO SANTANA contra sentença proferida pelo Juízo da 4ª Vara Cível da Comarca de Joinville, Dr. Luis Paulo Dal Pont Lodetti, que, na “ação reivindicatória com pedido sucessivo de desocupação e condenação ao pagamanto de alugueres”, movida em face de FERNANDA DE OLIVEIRA, julgou improcedente o pedido (evento 49, SENT1).
Após embargos de declaração (evento 53, EMBDECL1), os quais foram rejeitados, o autor foi multado em 2% (dois por cento) do valor atualizado da causa com fundamento no art. 1026, § 2º do CPC (evento 55, SENT1).
Em suas razões recursais, argumentou, em resumo, que: (a) o apelante ajuizou a ação para reivindicar o imóvel que fora ocupado pela mãe da apelada (Tânia) em razão de comodato verbal celebrado; (b) o comodato foi extinto com o falecimento de Tânia; (c) foi o apelante quem recolheu os tributos gerados pelo imóvel (IPTU e taxa de limpeza urbana) e pagou o financiamento junto à COHAB; (d) recentemente a COHAB transferiu o domínio do imóvel ao apelante por escritura pública; (e) a multa aplicada por ocasição do julgamento de embargos de declaração é indevida, visto que não houve intuito protelatório na oposição daquele recurso; (f) a prova documental demonstrou a ocorrência de atos incompatíveis com a vontade de doar; (g) oito anos após o comodato, o apelante requereu alvará de construção para ampliação do imóvel; (h) nove anos após o comodato, o apelante quitou o saldo devedor do contrato de financiamento junto à COHAB; (i) a posse para fins de usucapião (art. 1.238 do Código Civil) é aquela com ânimo de dono, e não a mera apreensão física da coisa; (j) não há nenhuma prova de que havia pretensão de domínio de Tânia ou seus herdeiros sobre o bem, sobre o qual mantinham apenas a apreensão física; (k) a posse decorrente do comodato gracioso não gerou qualquer direito possessório em favor da apelada, como dispõe os arts. 1.208 do Código Civil/2002 e 497 do Código Civil/1916; (l) não foi provada a doação do imóvel a Tânia, especialmente porque trata-se de negócio jurídico que exige a forma escrita (art. 541 do Código Civil); (m) o negócio jurídico em questão deve ser estritamente interpretado (art. 114 do Código Civil); (n) a testemunha Kátia Teresinha demonstrou parcialidade e interesse na causa em seu depoimento; 
Ao final, postulou o provimento do recurso com a reforma da sentença no sentido de rejeitação a exceção de usucapião e julgar procedente o pedido reivindicatório. Também pugnou pelo afastamento da multa aplicada pelo juízo de origem (evento 61, APELAÇÃO1).
Contrarrazões apresentadas (evento 68, CONTRAZAP1).
Este é o relatório.

VOTO

O recurso merece ser conhecido, porquanto preenchidos os pressupostos de admissibilidade.
Trata-se de ação reivindicatória ajuizada pelo apelante, na qual alegou que em 1986 adquiriu o Lote 04 da Quadra 46 Conjunto Habitacional Ademar Garcia, matrícula n. 53.457, diretamente da Companhia de Habitação do Estado de Santa Catarina – COHAB/SC, e que, no ano seguinte, cedeu o direito de ocupação do imóvel, através de comodato verbal, à Srª. Tânia Terezinha de Oliveira, o qual foi extinto com o falecimento desta, em 2021. Narrou que, com a extinção do comodato, notificou a atual ocupante do imóvel, a apelada e filha de Tânia, para desocupá-lo, o que não não ocorreu, ensejando o ajuizamento desta ação.
A pretensão reivindicatória foi julgada improcedente ante o acolhimento da exceção de usucapião oposta pela apelada. Em suma, o juízo de origem entendeu que restou comprovada a doação operada entre o apelante e a Srª. Tânia, e não o comodato alegado, de modo que a posse fora exercida por Tânia e pela apelada com ânimo de dono. Veja-se:
Assim delimitada a prova testemunhal, para mim ficou clara a “doação” do imóvel pelo autor à falecida Tânia Terezinha de Oliveira, genitora da ré, levada a efeito por volta do ano de 1986.
Com efeito, as informantes Maria das Dores Arins, Elisangela Moreira da Silva e a testemunha Kátia Terezinha da Silva Hoffmann mostraram-se categóricas na afirmação de que a falecida Tânia Terezinha de Oliveira recebeu a casa do autor através dessa “doação” verbal, tanto que sempre a presenciaram realizando reformas no local.
De resto, os depoimentos prestados pelas testemunhas do autor limitaram-se a tratar de aspectos ocorridos na década de oitenta, e em nada abordaram as condições atuais do imóvel.
Fora isso, as declarações carreadas no evento 1.26-1.29 também estão a indicar que o imóvel pertencia à falecida Tânia Terezinha de Oliveira e que esta sempre investiu em reformas para melhoria da casa.
Neste particular, aliás, não custa insistir que “para a caracterização da prescrição aquisitiva capaz de dar azo à usucapião extraordinária, faz-se necessário que o interessado, com animus domini (posse plena ou absoluta), detenha a posse mansa, pacífica e ininterrupta da coisa por um prazo não inferior a vinte anos, conforme o disposto no art. 550 do Código Civil/16, regra aplicável ao caso por força do disposto no art. 2.028 do Código Civil/2002” (TJSC, AC nº 2010.070390-1, de São Bento do Sul, Rel. Des. Joel Figueira Júnior).
Deveras, trata-se de tese confirmada pela prova testemunhal produzida em juízo, em especial o depoimento da testemunha Kátia Terezinha da Silva Hoffmann que declarou que conheceu a falecida Tânia Terezinha de Oliveira há aproximadamente trinta e seis ou trinta e sete anos e que ela já morava na casa objeto de litígio destes autos.
Mais não fosse, e nada obstante a duvidosa validade da “doação”em si,  a verdade é que os elementos de prova carreados aos autos, em especial a prova testemunhal, reconhecem que a falecida Tânia Terezinha de Oliveira, genitora da ré, era a possuidora exclusiva do imóvel, exercendo sua posse de forma mansa, pacifica, sem interrupção, oposição, com animus domini, ao longo de décadas, para depois operar a transmissão em favor da ré, via sucessio possessionis.
Assim, como nada existe a afastar a posse com ânimo de dona exercida pela ré, mais a sua antecessora, em posse que pode ser somada, e presentes os demais requisitos da usucapião extraordinária, a pretensão petitória deságua na improcedência, já que “o acolhimento da exceção de usucapião é óbice à procedência da ação de imissão de posse, por afastar o requisito da posse injusta” (TJRS, AC nº 70015258437, de Porto Alegre, Rel. Des. Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes).
Ou melhor, “a posse exercida na forma como prevista no ordenamento pátrio apta à configuração da prescrição aquisitiva deve, uma vez arguida em defesa e devidamente comprovada, conduzir ao malogro da ação proposta pelo proprietário em perseguição à coisa” (TJSC, AC nº 0500128-67.2013.8.24.0032, de Itaiópolis, Rel. Des. Henry Petry Junior).
O recurso do autor se sustenta em dois argumentos sucessivos: o primeiro, de que não ocorreu doação alguma, mas a mera cessão de uso por comodato verbal; o segundo, de que, em razão da celebração do mencionado comodato, a posse exercida por Tânia não era qualificada para a usucapião, de modo que a exceção não merece acolhida.
Pois bem.
Entedo prudente antecipar que não há divergência relevante na jurisprudência acerca da inexistência de animus domini na “posse” exercida pelo comodatário. Em verdade, não há que se falar sequer em posse do comodatário, já que sua ocupação deriva da permissão manifestada pelo dono da coisa (art. 1.208 do Código Civil).
Portanto, se há comodato, não há posse ad usucapionem. Nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA. USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. IMPROCEDÊNCIA À ORIGEM. RECURSO DOS AUTORES. […] USUCAPIÃO. PRESSUPOSTOS LEGAIS NÃO ATENDIDOS. POSSE DESPROVIDA DE ANIMUS DOMINI. EVIDENCIADA A EXISTÊNCIA DE COMODATO ONEROSO ENTRE AS PARTES. IMÓVEL CEDIDO PELOS RÉUS. ATOS DE MERA PERMISSÃO QUE NÃO INDUZEM O EXERCÍCIO DE POSSE COM ÂNIMO DE DONO. INTELECÇÃO DO ART. 1.208 DO CC. PRETENSÃO RECHAÇADA. PARECER DA PGJ NO MESMO SENTIDO. HONORÁRIOS RECURSAIS. ARBITRAMENTO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 5001161-78.2022.8.24.0087, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Ricardo Fontes, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 24-10-2023).
E mais:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DO AUTOR. ALEGADO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. INSUBSISTÊNCIA. DEMANDANTE QUE RESIDIA NO IMÓVEL COM SEUS PAIS, OS QUAIS PASSARAM A MORAR NO LOCAL A TÍTULO DE COMODATO VERBAL, CONFORME CONFESSADO PELA PRÓPRIA GENITORA DO AUTOR, POR MEIO  DE ESCRITURA PÚBLICA. SUPLICANTE QUE NÃO ACOSTOU AOS AUTOS QUALQUER MEIO PROBANTE CAPAZ DE DERRUIR A DECLARAÇÃO DA SUA GENITORA. PROVA TESTEMUNHAL QUE TAMBÉM NÃO FOI CAPAZ DE DESCONSTITUIR A EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DO DOCUMENTO PÚBLICO. POSSE MANSA, PACÍFICA E ININTERRUPTA, COM ANIMUS DOMINI, SOBRE O IMÓVEL USUCAPIENDO, HÁ 10 ANOS NÃO DEMONSTRADA. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. HONORÁRIOS RECURSAIS FIXADOS. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0300155-67.2016.8.24.0084, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. José Agenor de Aragão, Quarta Câmara de Direito Civil, j. 19-10-2023).
Ainda:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE C/C PEDIDO LIMINAR. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS RÉUS. TESE DE QUE EXERCIAM A POSSE JUSTA, MANSA, PACÍFICA E ININTERRUPTA SOBRE A ÁREA LITIGADA DESDE 1991. INSUBSISTÊNCIA. ACERVO PROBATÓRIO QUE CONVERGE AO ENTENDIMENTO DE QUE OS RÉUS RESIDIAM NO LOCAL POR MEIO DE EMPRÉSTIMO GRATUITO, VIA COMODATO VERBAL, POR PERMISSÃO DA POSSUIDORA. RÉU QUE ERA MOTORISTA DA APAE E MORAVA NO LOCAL POR PERMISSÃO DESTA. POSSE SEM ÂNIMO DE DOMÍNIO. EXEGESE DO ART. 1.208 DO CÓDIGO CIVIL. DESATENDIMENTO DE NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA DESOCUPAÇÃO QUE É SUFICIENTE A AFASTAR O CARÁTER JUSTO DA POSSE. EXCEÇÃO DE USUCAPIÃO DESCABIDA. ADEMAIS, QUESTÕES DOMINIAIS IRRELEVANTES AO DESLINDE DE AÇÃO MERAMENTE POSSESSÓRIA. SENTENÇA MANTIDA. HONORÁRIOS RECURSAIS. MAJORAÇÃO DA VERBA ARBITRADA NA ORIGEM EM ATENÇÃO AO DISPOSTO NO ART. 85, § 11, DO CPC, TODAVIA, SUSPENSA A EXIGIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0301408-65.2017.8.24.0081, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Silvio Dagoberto Orsatto, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 05-10-2023).
Por outro lado, a tese recursal de que a doação não pode ser reconhecida por ausência de instrumento por escrito mão merece acolhida. Isso porque a doação verbal, ainda que se trate de negócio jurídico inválido por vício de forma (art. 166, IV, c/c art. 541, caput, do Código Civil), qualifica a ocupação exercida pelo pretenso donatário, que passa a exercer a posse com ânimo de dono e, portanto, a deter um dos requisitos para a aquisição da propriedade pela usucapião.
Nesse sentido, e mudando o que precisa ser mudado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. INSUBSISTÊNCIA. AQUISIÇÃO DO BEM MEDIANTE DOAÇÃO VERBAL. IMPOSSIBILIDADE DE TRANSFERÊNCIA DA TITULARIDADE NO CASO CONCRETO.  TERRENO INSERIDO EM ÁREA MAIOR, NÃO DESMEMBRADA. SITUAÇÕES QUE, POR SI SÓS, NÃO REPRESENTAM ÓBICE À AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. PRECEDENTES. ENFRENTAMENTO IMEDIATO DO MÉRITO INVIÁVEL. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA INSTRUÇÃO E REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO. […] (TJSC, Apelação n. 0301764-51.2018.8.24.0008, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Flavio Andre Paz de Brum, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 22-06-2023).
E ainda:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. EXTINÇÃO DO FEITO PELA INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. DOAÇÃO VERBAL DE TERRENO NÃO DESMEMBRADO. NEGÓCIO INVÁLIDO (ART. 541, PARÁGFRAFO ÚNICO, DO CC). DOADOR GENITOR FALECIDO. SITUAÇÃO QUE NÃO OBSTA A AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO PELA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. PRECEDENTES. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. SENTENÇA CASSADA. PROSSEGUIMENTO DO FEITO NA ORIGEM. INAPLICABILIDADE DO ART. 1.013, § 3º, DO CPC/15. RECURSO PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0300933-08.2017.8.24.0050, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Vilson Fontana, Quinta Câmara de Direito Público, j. 16-11-2023).
Assim, estabelecidas as premissas jurídicas relevantes à resolução do caso, entendo que a controvérsia a ser dirimida neste julgamento é eminentemente fática: se a Srª. Tânia passou a ocupar o imóvel até então sob domínio do apelante em decorrência de doação verbal ou de comodato verbal.
Neste ponto, a sentença pautou-se essencialmente nos depoimentos colhidos em audiência de instrução. Já o apelante sustenta que o principal depoimento deve ser relativizado, vez que a testemunha desmonstrou parcialidade em razão de seu interesse no resultado do processo. Além disso, suscita os demais documentos juntados ao processo, os quais, segundo alega, demonstram sua “ingerência econômica” sobre o imóvel.
Razão lhe assiste.
A testemunha Kátia Terezinha da Silva Hoffmann, vizinha da apelada, ao final de seu depoimento, e após confrontada pelo advogado do apelante, que questionou se ela acharia justo que a apelada vencesse o processo, afirmou expressamente: “mas é claro!” (evento 42, VÍDEO2). 
Além de tal afirmação enfraquecer a parcialidade do testemunho de Kátia, extraio de seu depoimento que todo seu conhecimento acerca do negócio jurídico celebrado decorre do que ouviu a Srª Tânia afirmar. Aliás, a testemunha também afirmou expressamente que o apelante “deu o imóvel para Tânia morar”, o que, diante da linguagem coloquial da população em geral, não esclarece indene de dúvidas se a operação foi uma doação pura e simples ou mero empréstimo gratuito (comodato).
Seguindo nos depoimentos colhidos em audiência, não vejo prova suficiente da doação alegada.
A testemunha Luzia Zenalla, que era cunhada do apelante à época do início da ocupação do imóvel por Tânia, afirmou que tinha ciência de que era o apelante o dono do bem, e que não havia sido noticiada a doação alegada (evento 42, VÍDEO2). Já Sérgio Ramos Rosa afirmou que foi procurado pelo apelante, em 1987, para lhe fornecer orçamento para a ampliação da residência, em momento que a Srª. Tânia já residia no imóvel (evento 42, VÍDEO2).
Curiosamente, a tia da apelada, Srª. Maria das Dores Arins, ouvida na condição de informante, afirmou que o apelante “emprestou” a casa à Tânia, corrigindo-se na sequência do seu depoimento e afirmando que ele “deu” o imóvel (evento 42, VÍDEO2). E a prima da apelada, Elisangela Moreira da Silva, afirmou que o apelante doou o imóvel a Tânia, mas não soube esclarecer o motivo da doação.
De outra banda, entendo que a prova documental favorece a tese autora de comodato.
Com efeito, a transmissão da posse ocorreu em meados dos anos 1980. No entanto, em 1995, o apelante requereu perante a Prefeitura de Joinville alvará de construção para a ampliação do imóvel (evento 1, PROJ12). Além disso, em 1999 realizou o pagamento do saldo remanescente do financiamento contratado junto à COHAB (evento 1, DOC13) e, em ao longo dos anos, procedeu o pagamento dos tributos incidentes sobre o imóvel – o que, ao contrário do que alegou a apelada em suas contrarrazões, não ocorreu somente após o falecimento de Tânia (1.14, 1.15, 1.16, 1.17, 1.18).
Tais condutas são incompatíveis com a intenção de doar. Ora, se o apelante realmente tivesse doado a propriedade do imóvel a Tânia, com quem, a partir do que se extrai dos autos, não tinha qualquer proximidade/relação de amizade, por qual razão permaneceria realizando pagamentos destinados à manutenção do bem e sua melhoria?
Sabe-se que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113 do Código Civil), de modo que, ainda que a Srª Tânia tenha imaginado estar recebendo o imóvel a título de doação, verifica-se que o apelante sempre atuou conforme sua narrativa dos fatos, ou seja, de que transferiu somente o uso do imóvel, via comodato verbal.
Ademais, a apelada juntou comprovantes de pagamento de despesas ordinárias do imóvel, tais como contas de água e energia (evento 13, COMP8, 13.9, 13.10, 13.11, 13.12, 13.13, 13.14, 13.15, 13.16, 13.17, 13.18, 13.19, 13.20 e 13.21). Tais documentos sequer podem ser considerários como indício da ocorrência da doação, já que o pagamento de tais contas decorre da ocupação do imóvel para fins residenciais – a qual é incontroversa -, que pode ter origem tanto na pretensa doação quanto no alegado comodato. E o mesmo se diga em relação às despesas decorrentes de manutenção e reforma/ampliação do imóvel (13.23), as quais também decorrem do fato de que a apelada e sua mãe residiam no local.
Com relação às declarações de próprio punho juntadas à contestação (13.26, 13.27, 13.28, 13.29), tenho que sua força probante é irrisória. Primeiro porque a veracidade e autenticidade não foram corroboradas pela oitiva dos declarantes em audiência. Segundo porque apenas traduzem a versão dos fatos apresentada por Tânia, que, possivelmente, realmente acreditou estar recebendo o imóvel em doação.
Diante de todo esse contexto, entendo que restou comprovado o domínio do imóvel pelo apelante (art. 373, I, do CPC), o que lhe garante o direito de sequela previsto no art. 1.228, caput, do Código Civil:
O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Aliás, com a notificação da parte apelada para desocupação do imóvel (evento 1, NOT20), cessou a natureza justa da posse exercida por ela, de modo que deve ser julgado procedente o pedido reivindicatório.
Com a procedência do pedido de restituição do bem, necessário analisar, também, a pretensão condenatória ventilada à inicial. E esta deve ser acolhida.
Isso porque, cessada a posse justa, à apelante não é lícito ocupar imóvel alheio gratuitamente, sob pena de enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil). Portanto, condeno a apelada ao pagamento de aluguéis pela ocupação do imóvel objeto da ação, desde 01/05/2021 (dia seguinte ao escoamento do prazo concedido em notificação extrajudicial – evento 1, NOT20).
O valor dos aluguéis deverá ser apurado em liquidação de sentença, pelo procedimento comum, uma vez que não há qualquer elemento probatório acerca do valor do imóvel ou dos locatícios.
Por fim, não verificado o caráter protelatório dos embargos de declaração opostos contra a sentença, revogo a multa aplicada ao apelante.
Reformada a sentença, necessário inverter os ônus de sucumbência. Assim, CONDENO a parte apelada ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 15% (quinze porcento) do valor atualizado da causa.
A exigibilidade da verba, porém, fica suspensa na forma e prazo do § 3º do art. 98 do Código de Processo Civil, por ser a parte apelada beneficiária da justiça gratuita
Pelo exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provimento, a fim de julgar procedentes os pedidos autorais, delegando à liquidação de sentença a apuração do valor devido a título de aluguéis, revogar a multa por embargos protelatórios e inverter os ônus de sucumbência.

Documento eletrônico assinado por EDUARDO GALLO JR., Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4232381v23 e do código CRC 2a5e7060.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): EDUARDO GALLO JR.Data e Hora: 19/12/2023, às 12:13:13

Apelação Nº 5025121-50.2021.8.24.0038/SC

RELATOR: Desembargador EDUARDO GALLO JR.

APELANTE: EDVALDO SANTANA (AUTOR) APELADO: FERNANDA DE OLIVEIRA (RÉU)

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DO AUTOR.
JUÍZO DE ORIGEM QUE RECONHECEU A DOAÇÃO DO IMÓVEL OBJETO DA AÇÃO, DO APELANTE PARA A MÃE DA APELADA. INSURGÊNCIA CONTRA TAL FATO. ALEGAÇÃO DE QUE O USO FOI CEDIDO MEDIANTE COMODATO VERBAL. TESE DE QUE A POSSE EXERCIDA PELA OCUPANTE NÃO SERIA QUALIFICADA PARA USUCAPIÃO. SUBSISTÊNCIA. DOAÇÃO NÃO DEMONSTRADA. DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA DA APELADA QUE NÃO COMPROVA A CELEBRAÇÃO DE TAL NEGÓCIO JURÍDICO. ADEMAIS, PARCIALIDADE DO DEPOIMENTO CONFIGURADA. TIA DA APELADA QUE, ACIDENTALMENTE, NARROU QUE O APELANTE “EMPRESTOU” A CASA PARA A IRMÃ. COMPROVANTES DE PAGAMENTO DE CONTAS DE ÁGUA E ENERGIA, BEM COMO DE DESPESAS DECORRENTES DE MANUTENÇÃO E REFORMA/AMPLIAÇÃO DO IMÓVEL, QUE NÃO PRESTAM À PROVA DO DOMÍNIO. DESPESAS ORDINÁRIAS COMUMENTE SOB RESPONSABILIDADE DO OCUPANTE. ADICIONALMENTE, PROVA DOCUMENTAL QUE FAVORECE À TESE AUTORAL. APELANTE QUE, ANOS APÓS A TRANSFERÊNCIA DA POSSE, REQUEREU ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO PARA AMPLIAÇÃO DO IMÓVEL, QUITOU O FINANCIAMENTO JUNTO À COHAB E PAGOU OS TRIBUTOS INCIDENTES SOBRE O IMÓVEL. CONDUTAS INCOMPATÍVEIS COM A INTENÇÃO DE DOAR. NEGÓCIOS JURÍDICOS QUE DEVEM SER INTERPRETADOS CONFORME A BOA-FÉ E OS USOS DO LUGAR DE SUA CELEBRAÇÃO (ART. 113 DO CÓDIGO CIVIL). DOMÍNIO DO APELANTE SOBRE O IMÓVEL COMPROVADO (ART. 373, I, DO CPC). ALÉM DISSO, NOTIFICAÇÃO EXTRADICIAL DA APELADA PARA DESOCUPAÇÃO DO BEM. POSSE INJUSTA. DIREITO DE SEQUELA (ART. 1.228, CAPUT, DO CÓDIGO CIVIL) EVIDENCIADO. SENTENÇA REFORMADA PEDIDO REINVIDICATÓRIO PROCEDENTE.
PLEITO CONDENATÓRIO. ALUGUÉIS DEVIDOS A PARTIR DO ENCERRAMENTO DO COMODATO. ACOLHIMENTO. VERBA DEVIDA A PARTIR DO TÉRMINO DO PRAZO PARA DESOCUPAÇÃO. VALOR A SER APURADO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA.
APLICADA MULTA AO APELANTE NA ORIGEM. REVOGAÇÃO. AUSÊNCIA DE CARÁTER PROTELATÓRIO DOS EMBARGOS OPOSTOS. RECURSO PROVIDO NO PONTO.
INVERSÃO DA SUCUMBÊNCIA.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 6ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, a fim de julgar procedentes os pedidos autorais, delegando à liquidação de sentença a apuração do valor devido a título de aluguéis, revogar a multa por embargos protelatórios e inverter os ônus de sucumbência, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 19 de dezembro de 2023.

Documento eletrônico assinado por EDUARDO GALLO JR., Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 4232382v6 e do código CRC 7fc31ac3.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): EDUARDO GALLO JR.Data e Hora: 19/12/2023, às 12:13:13

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 19/12/2023

Apelação Nº 5025121-50.2021.8.24.0038/SC

RELATOR: Desembargador EDUARDO GALLO JR.

PRESIDENTE: Desembargador JOAO DE NADAL

PROCURADOR(A): IVENS JOSE THIVES DE CARVALHO
APELANTE: EDVALDO SANTANA (AUTOR) ADVOGADO(A): IVAN REZENDE DE OLIVEIRA (OAB SC058109) ADVOGADO(A): WALTER HUGO MACHADO (OAB SC023761) APELADO: FERNANDA DE OLIVEIRA (RÉU) ADVOGADO(A): JOSUÉ EUGÊNIO WERNER (OAB SC004933)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 19/12/2023, na sequência 64, disponibilizada no DJe de 04/12/2023.
Certifico que a 6ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 6ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO, A FIM DE JULGAR PROCEDENTES OS PEDIDOS AUTORAIS, DELEGANDO À LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA A APURAÇÃO DO VALOR DEVIDO A TÍTULO DE ALUGUÉIS, REVOGAR A MULTA POR EMBARGOS PROTELATÓRIOS E INVERTER OS ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador EDUARDO GALLO JR.
Votante: Desembargador EDUARDO GALLO JR.Votante: Desembargador MARCOS FEY PROBSTVotante: Desembargador JOAO DE NADAL
JONAS PAUL WOYAKEWICZSecretário

Fonte: TJSC

Imagem Freepik

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